sexta-feira, outubro 28, 2005
Quando GetúlioVargas estava no poder elegeu o samba, do jeito que é feito no Rio, “a música brasileira”. Em sua ânsia de ditador ele queria a unidade, não a idéia de um país continente, rico e diverso. O projeto samba se deu tão bem que até hoje, dentro ou fora do Brasil, está associado a identidade cultural da nação.
Aqui em Pernambuco a elite elegeu o frevo como símbolo maior da pernambucanidade. É a mesma elite que há pouquíssimo tempo reinava em canaviais movidos a força escrava, praticando a pior forma de relação com o solo que é a monocultura. Toda a riqueza musical do estado parece nada diante da suposta nobreza do frevo, que à semelhança de seus mecenas, tem um ar de cavalheiro decadente, uma dama sem jóias, cadáver insepulto perambulando pelos carnavais de Olinda.
Falar de frevo no Recife é assunto delicado, todos vestem os jargões sobre a complexidade e virtuosismo necessário, todos sabem solfejar “Vassourinhas” ou outro clássico. Mas, falando sério: quantos de vocês tem discos de frevo em casa? Quantas vezes vocês ouvem esse gênero fora do carnaval? Você sabe cantar um frevo recente? Certamente a resposta da maioria é não.
Enquanto nos carnavais da Zona-da-mata os maracatus se apropriam dos bregas da rádio, enquanto os bregas se apropriam do Kraftwerk, o frevo permanece intocado feito donzela em sua torre de pureza. E tome as mesmas velhas composições todo o ano.
Quem sabe, a rasteira que o frevo merece levar, virá da Bomba do Hemetério, de baixo pra cima, com seus metais selvagens e toda a graça do Maestro Forró. Ou, do super músico Spock fosse ele menos formalista e mais jazzy.
Ripar
O hit virtual “Orgulho”, sucesso de downloads no Recife, me decepcionou profundamente. O vídeo é um amontoado de cenas de sexo chocante retirados de várias fontes que se sucedem enquanto seu autor, Carlos Amorim, recita uma lista de nomes de curadores. Eu esperava que o corpo sodomizado, vítima de zoófilos e outras coisas mais fosse do autor. Mas não é. Fazer arte com o dos outros é fácil. Artista que é artista bota o seu na reta.
Não. Não se trata da reedição do clássico de Lou Reed. Transformer também é o nome que batiza a primeira compilação de remixes da cena pernambucana. À frente do projeto, o DJ Bruno Pedrosa, que apresenta aos internautas oito faixas para download. O interessante é o preço: de graça!! Vá no site www.fundicao.com/transformer e faça a festa. O Disco sai em Dezembro com 15 remixes exclusivos. Faces do Subúrbio, Cordel do Fogo Encantado, Mundo Livre, entre outros estão lá devidamente reconstruídos. Já tenho uma favorita: Silvério Pessoa segundo o ponto de vista da dupla Drumagick.
domingo, outubro 23, 2005
Cleptomúsicamania
Há 25 anos atrás o desconhecido grupo Negativland ganhou notoriedade após misturar pedaços do mega hit, “I Still Haven’t Found What I’m Looking For” com piadas gravadas em off do comediante Kasey Kasem acerca dos pseudônimos dos integrantes do U2. A Island, gravadora do grupo irlandês, entrou com um processo que gerou mais dinheiro que o Negativland jamais conseguiu movimentar.
Precursores da discussão sobre uso de samples e críticos ferozes das leis que regem os direitos autorais, o Negativland lançou recentemente mais uma série de áudio- colagens onde a propriedade intelectual, como a conhecemos, é duramente satirizada.
A obra em questão é “No Business”, um envelope amarelo que contém trechos dos beatles, Julie Andrews, comerciais de TV e transmissões de rádio. Os caras são tão ousados que cutucaram a cobra com vara curta: o videoclipe presente no cd, é um agregado de imagens surrupiadas e tem a voz do todo poderoso presidente do RIAA bradando contra o dowloading. Na mesma faixa dá pra ouvir trechos de Elton John, Roy Orbison, Blonde Redhead, The Who, Richard Farina e uma delicada Pequena Sereia, de Walt Disney.
O que se questiona é o descompasso entre as novas tecnologias disponíveis que permitem a criação de uma nova arte e os limites impostos por leis e grandes corporações que trabalham em sintonia com priscas eras. No livro que acompanha o envelope os artistas lembram o pequeno escândalo que surgiu na época do lançamento das fitas cassetes. A indústria tentou abocanhar percentuais sobre a venda de cada fita virgem “para compensar o prejuízo” que teriam com a facilidade do público copiar os originais. O argumento meramente mercantilista supõe que a música depende da indústria. Don Joyce, em entrevista para a revista XLR8R ironiza: “A morte da indústria não significa a morte da música (...) A idéia de alguém ter uma carreira ou tocar um negócio baseado em vender pedaços de metal embrulhados em plásticos é historicamente recente e não está escrita na pedra”.
Quem é o dono? (Parte 1)
He-Man no maracatu? Sabonete na ciranda? Sim, existe e não foi um super DJ de bootlegs (nome dado a faixas que se utilizam de trechos de outras músicas sem autorização legal) que fez esse mix aparentemente maluco.
Nos maracatus e cirandas espalhados pelo estado, a metaleira frequentemente se apropria do que se ouve em rádios, jingles ou nos temas das mini-séries da TV. Então, não se espante se você reconhecer o tema dos trapalhões entre um verso e outro de Barachinha. Não é mera coincidência. Trata-se dessa teia de conhecimento compartilhado chamada cultura.
Em sua sabedoria a cultura popular parece ser mais desencanada com a pergunta “a quem pertence essa música?” e, generosamente, versos se aprimoram, esculpidos por poetas diferentes, em diferentes épocas, enquanto melodias refeitas centenas de vezes se espalham nas noites frias da zona-da-mata.
O compartilhamento de informações na música se repete nas grandes cidades com o mesmo espírito mas utilizando outras ferramentas como o sampler, espécie de gravador, seqüenciador. Nos bailes funks do Rio ou nas festas de aparelhagem em Belém do Pará, pequenos pedaços de som são reciclados para construir um híbrido novo e absolutamente original. Quem usa samples (ou, literalmente, amostras) usa-os como um músico usaria as notas de um teclado para compor.
As legislação brasileira sobre o assunto é retrógrada e inibidora dessa forma de expressão que cresce muito a cada dia. Para quem quer samplear algo e pagar por isso há tantas barreiras que é mais fácil fazer as coisas de modo ilegal. Em seus delírios de pureza, as leis protegem o autor a ponto de separa-lo da realidade, de seus pares, como se alguém realmente criasse algo de modo solitário e independente. Como se a música não fosse o acúmulo de técnicas e gostos depurados durante séculos de experiência humana.
Esse coqueiro que dá coco
Outro dia li nas páginas desse Diário uma matéria dedicada aos traços de um conhecido artista plástico local. O tiozinho retratou a si próprio matando o Papa, Bush e Lula. Alvos facinhos, bem ao gosto do senso mais comum. Mesmo com essa temática adolescente, o traço tosco e a preguiça intelectual, ele é levado a sério nos mundos das galerias, aquelas lojas que vendem a decoração mais cara do planeta (como disse Robert Crumb “se não for caro não é arte”).
O equivalente disso no mundo das canções é a chamada MPB, sigla para música popular brasileira, embora nem sempre seja tão popular. Na década de 70 artistas eleitos pela intelectuália brasileira não vendiam muito e as gravadoras destinavam uma parte dos lucros gerados por gente como Odair José, que vendia horrores mas não era “artista”, para cobrir o buraco financeiro deixado pelos gênios incompreendidos. Só pra lembrar, Odair José é autor de uma das mais polêmicas letras do cancioneiro popular, “Pare de tomar a pílula”, banida não só no Brasil como em vários países da América Latina católica.
A história da auto-complacência na MPB vem de longe. Repare só que pérolas da obviedade você pode achar num clássico como “Aquarela do Brasil”: “Esse coqueiro que dá coco” ou “bota o rei congo no congado” ... e tudo isso pra se ufanar no final, de peito aberto: “Braaaasiiiiiiiiiil”.
Passa-se o tempo e a MPB, que nem a ordem dos músicos, anda mal das pernas mas ainda se sustenta através do sonho de tocar “Dia Branco” em algum bar embora reste sempre a impressão que muitos mais prefeririam o silêncio. Ou que não houvesse música para poder conversar em paz.
Como tudo no Brasil, a culpa é do governo! Do ensino público deficitário que faz as pessoas acharem que “som de besouro, imã - branca é a luz da manhã” ou “caetanear o que há de bom” sejam achados poéticos.
Pra terminar, um pedido: por favor, alguém poderia me explicar o que é “badauê”?
O mangue nunca existiu
Nos últimos dias da década de 80 essa cidade era um dos lugares mais aterrorizantes do mundo para pirralhos de 20 e poucos anos como eu e meus amigos. Duros, sem muitas perspectivas e sem internet ralávamos para obter um pouco de informação através de um fanzine bacana, revista importada ou um lançamento gringo que desse algum sentido para nossas vidas.
Durangos cheio de idéias e pouca prata. Forçosamente tínhamos que escolher a primeira alternativa ao impasse “mudar o lugar ou mudar de lugar?” Começamos a fazer festas com o objetivo de criar uma cena, uma zona territorial autônoma que iluminasse aqueles dias sombrios de verão. Conseguimos montar um circuito de festas undergrounds no Recife Antigo, então lugar de prostituição, sem glamour e sem shopping. Foi em torno dessas festas que se reuniu um grupo de pessoas tão bem descritas no manifesto mangue de Fred Zeroquatro “interessados em design, teoria do caos, acid house ....”
No início era um coletivo de DJs logo superado pela persuasão sonora das bandas Mundo Livre e Nação Zumbi que viraram ponta-de-lança de um projeto coletivo: criar uma “cooperativa cultural” para lançar discos, livros, produzir vídeos e toda a sorte de sonhos que se tem nessa idade. Chegamos a fazer alguns dos primeiros shows envolvendo toda a equipe, com cenários, projeções e cartazes bacanas. Isso é o que chamávamos de Mangue Bit.
O fim dessa utopia coincide com a profissionalização da Nação e Mundo Livre, então contratadas por gravadoras, com empresários e tudo mais que envolve uma longa e respeitável carreira. Era impossível manter diálogo com a Sony ou a Warner e as tentativas de absorção do resto do time foram em vão. A imprensa, sempre atrás da novidade fácil, nunca entendeu o que era um coletivo ou uma cooperativa cultural e o mangue (agora já Mangue Beat, por um erro de compreensão de algum jornalista) passou a ser tratado como “movimento”, virou fenômeno de massa sem diálogo e pouca reflexão além dos clichês curiosamente bairristas ao contrário de uma idéia originalmente cosmopolita. E efêmera.