quinta-feira, março 23, 2006

Do armário para a pista

Sob o luar do sertão pernambucano um poeta – sertanejo raro, assumido apreciador de rapazes – bradava seus versos provocantes:

Eu não gosto de mulher

Beleza nela eu não acho

E seu opositor metralhava, continuando o mourão voltado:

Eu também não gosto dela

Eu gosto é de cabra macho

E a resposta – exemplo de orgulho homo, versão cabocla – vem em seguida:

Eu, vendo um cacete ereto

Abro as cortinas do reto

E desço ladeira abaixo

Se a bíblia estava certa e Deus criou o mundo usando palavras tal como faça-se a luz e a luz foi feita, o mesmo acontece na sociedade contemporânea. Natureza e cultura se confundem de tal modo que as palavras regem nossas vidas e desenham a realidade.

Associado ao desejo pelo mesmo sexo, criou-se um termo – gay – que logo virou gênero, mercado consumidor, ou público alvo, como gostam de dizer os fazedores de propaganda. No balaio gay – termo historicamente recente – todos parecem iguais e a individualidade se dissolve como se não estivéssemos tratando de pessoas tão diferentes entre si, independente de suas preferências sexuais.

Diferente do homossexualismo clássico – o simples desejo –, a cultura gay gira em torno de vocabulário, estereótipos e padrões de beleza peculiares – e há quem reivindique uma sensibilidade gay –, resultando num segmento de consumo ou, numa hipótese mais simpática, uma força política baseada na sexualidade.

As origens do orgulho gay e o nascimento da música eletrônica – no sentido dance – se misturam. Foi em guetos mal freqüentados – latinos, homossexuais, negros – das grandes cidades americanas que os primeiros experimentos de tecno e house surgiram para embalar a felicidade de quem tinha que andar à margem da triste moral norte americana. O que era voz de uma subcultura se transformou com o tempo e penetrou nas FMs, tomou a sociedade careta e ela mesma – a cultura clubber – absorvida pela indústria, esvaziada de seus ideais, tornou-se chata e mero produto para enganar trouxas deslumbrados.

O que não mudou mesmo foram os preconceitos.

O informante

Quem me contou essa paradinha dos poetas foi Lira, aquele moço de branco à frente do Cordel do Fogo Encantado. Cauteloso, ele só contou a mágica e guardou pra si o segredo: é que o cara pode estar casado a essa altura.

O mestre

David Mancuso é um pioneiro da pista de dança como a gente conhece hoje. Seu loft em Nova Iorque abrigou festas memoráveis e introduziu gerações e instituiu o ambiente de festa como algo transcendental, um espaço de igualdade e respeito tendo a música como algo sagrado e o DJ como seu sacerdote.

Seu respeito pelas faixas que tocava – um espectro em torno das várias vertentes da black music – era tanto que ele não mixava as faixas entre si, deixando-as tocar até o final e, conta-se, era obcecado com a qualidade do som.

Curioso? Então procure as compilações The Loft e se entregue ao prazer de escutar verdadeiros remédios para a alma.

A vítima

Vocês lembram daquele rapaz que foi espancado pela polícia durante a festa Liquid Sky, na Casa da Cultura? Sua tranqüilidade e colaboração para com os representantes da lei – do cão? – não impediram um processo que resultou em obrigatoriedade de consultar serviços psiquiátricos. Amigos, vejam bem: o cara apanhou de graça, virou acusado e, na seqüência.... maluco de carteirinha. Enquanto isso os espancadores de uniforme cavalgavam no meio da platéia do Rec Beat brandindo seus cassetetes horrorizando turistas e nativos.

Claro que o cara é preto e durango.

Isso é tão comum no Brasil que a gente às vezes até pensa que é normal. Não é! Não deixe passar em branco o descaso da justiça. O CENDHEC (3222 6177) fornece assistência jurídica gratuita e, mais especificamente ligado à violência policial, temos o GAJOP (3222 1596).

domingo, março 19, 2006

Felicidade não é Chiclete

Felicidade, segundo Flea, baixista do Red Hot Chili Peppers, é acordar, acender um cigarro que passarinho não fuma e ouvir Captain Beefheart a todo volume. Bingo!

Já Tom Zé, numa de suas mais inspiradas letras promete a amada que no dia seguinte a felicidade vai desabar sobre os homens, para completar que ela – a felicidade – mete medo.

Música e felicidade sempre andaram juntas – insinua-se até que há algo mais entre as duas – e a cara sisuda de João Cabral de Melo – que dizia não gostar de música – só reforça essa idéia. Em qualquer comemoração há sempre alguém que puxa um tema e é logo seguido por outros cantores de última hora. É inimaginável uma festa silenciosa nem mesmo em aniversário de surdo, capaz de sentir as vibrações das ondas sonoras.

O filho da minha amiga, em seu primeiro carnaval no Recife, indaga: pra quê tanta felicidade? Eu me pergunto o mesmo diante de Chicletes, Ivetes, Evas e coisas do gênero. Tanta necessidade de se afirmar feliz soa como desespero. Em todas as letras tem sempre um tira o pé do chão, balança, quero ver todo mundo dançando ... Palavras de ordem gritadas em tom de histeria como verdadeiros nazis da alegria, homicidas da espontaneidade que ficou do lado de fora da corda por falta de grana.

Pula! Mexe! Mamãe sacode!

Grana e desespero movem a cultura em torno da axé music e talvez por isso sua natureza seja tão arrivista. A noção de segmentação de classe social é tão forte quanto as cordas de isolamento e seus tentáculos econômicos impregnam secretarias de cultura de todo o país em busca da diversão fácil.

No mundo axé, não há espaço de reflexão e para garantir isso o som é alto e agudo, as cores berrantes enchem os olhos, as luzes fortes iluminam os sacerdotes –cabelos sebosos, belas pernas, litros de tintura, modos de pop star - turbinados por algum super Prozac berram no microfone rebola, sobe, desce ...

Não há estudo sobre isso mas arrisco dizer que a indústria da estupidez é a que mais cresce nesse mundo, é a mais lucrativa e, no fluxo global, a axé music vergonhosamente representa o Brasil.

Água

O Dilúvio é o nome de uma revista/fanzine gaúcha não só bem intencionada como efetivamente bem resolvida. Entrevistas longas, textos politizados e, eventualmente, uma dose de ingenuidade necessária. Numa das edições, entrevista super bacana com nosso querido Bactéria, do Mundo Livre s.a.

Nos últimos exemplares a revista traz como opção um cd com novos nomes da cena de Porto Alegre.

Como comprar?

Manda email pro Tiago Jucá: revistaodiluvio@yahoo.com.br

Para checar sem gastar um puto, tente o http://www.necessito.com.br/odiluvio/

Anarquia

Estou relendo e adorando mais uma vez “O curto verão da anarquia”, de Hans Magnus Enzensberger. O livro – com subtítulo “romance” – reúne um apanhado de depoimentos devidamente editados, que nos conduzem a vida de Buenaventura Durruti, líder anarquista espanhol que, em plena guerra civil, montou um enclave utopista em Zaragoza.

Seus feitos e aventuras são quase inacreditáveis, daí o autor batizar de “romance” embora cercado de registros dos fatos.

Editado pela Companhia das Letras em 1987, está fora de catálogo e é minha recomendação de compra para a próxima vez que você, amigo leitor, for num sebo de livros.

Gibi

Um dos repórteres de guerra mais importantes da atualidade registrou suas impressões em quadrinhos. Seu nome é Joe Saco. Depois de ter estado na guerra da Bósnia e encarar áreas de assentamento palestino em conflito com o exército israelense, ele nos oferece um pouco de humor em Derrotista, uma compilação de trabalhos antigos.

A primeira série tem desenhos muitos influenciados por Crumb e personagens satíricos como o contador marxista que colabora para a derrocada do capitalismo consumindo mais café e chá que o suportável na firma onde trabalha ou o ecologista que promove uma greve de fome ... no seu gato.

O álbum é recém lançado e facinho de achar.

sexta-feira, março 10, 2006

A voz do povo

Depois de seis messes escrevendo esse espaço no Diário, o colunista faz um balanço e resolve compartilhar alguns resultados. Soube que a coluna tem repercutido em listas de discussões, virou pauta em sala de aula e o texto sobre a eletrocooperativa se desdobrou em outras matérias por aí, Brasil afora. O breve debate em torno do funk com meu vizinho do andar de cima teve uma recepção positiva mesmo entre amigos do meio jornalístico. Aplausos para o Diário por sustentar uma polêmica interna saudável!

O mais bacana é ler os emails escritos por pessoas que gastaram um precioso momento de suas vidas para dar apoio ou malhar essas linhas tão despretensiosas. A primeira reação aconteceu logo no começo: “seus sampleados, junto com toda a sua computação gráfica nem um pouco decorativa, não valem um único 'traço tosco' de Gil Vicente”. Confesso que errei feio. Nosso artista domina plenamente a técnica de desenho e eu escrevi aquilo a partir de uma imagem publicada no jornal. Mas mantenho minha opinião acerca do conceito da obra.

Pra compensar, o carinho da Liliana Falangola, neta do pioneiro do cinema pernambucano Ugo Falangola, que me enviou um pedaço de sua intimidade: uma foto do avô numa espécie de altar familiar.

Alguns emails são bastante inteligentes e me fazem pensar, como os de Luiz Pattoli, de São Paulo - breve reflexão sobre as mudanças da indústria fonográfica - ou a pergunta de Bruno Lins: ele começa afirmando que "busco o discernimento que se deve ter quando do julgamento de fenômenos como o brega, o funk, e outros ritmos populares sob pena do estabelecimento de uma inflexibilidade nos critérios que dizem respeito à 'qualidade' do que é produzido atualmente no país " pra na seqüência me questionar sobre o porquê de eu detonar a axé music. Essa rende uma coluna. Tá anotado!

Roupa suja

Mas, queridos leitores, se eu conheço o temperamento pernambucano, acho que o que vocês querem mesmo é saber das arengas.

Falar sobre baile funk de modo respeitoso significa confusão: "isto é papo de romântico babaca", me escreve um furioso anônimo para terminar com um "Quanta hipocrisia!" Isso apenas por que tratei Deise Tigrona e Catra como artistas que eles são. Não tem jeito: é mesmo guerra de classes.

Já Romilson se invocou e diz que venho "de longe - Sergipe - esculhambar o nosso frevo" e me manda estudar história. Porém, no fim, não posso deixar concordar com ele: "Sinceramente, nós lemos cada coisa em jornal!!!!"

Se existe uma linha tênue entre o amor e o ódio, devo tomar cuidado para que um guitarrista local não se apaixone perdidamente por mim. Por causa de quatro palavrinhas “ares de rock progressivo” - que, a meu ver, não combinava com o palco do Rec Beat -, fui bombardeado em três emails longos numa incrível demonstração de atenção e respeito a cada letrinha contida nessa coluna. O missivista externa seus sentimentos em palavras duras, sem rodeios: "entendo suas mágoas, seus infinitos rancores e recalques e, mais pra frente você tentou criar um sucesso virtual junto com seus amigos jornalistas jabazeiros e comunas , arrumou um bico nessa coluna pra não morrer de fome" - mal sabe ele que escrevo por prazer, meu ganho é essa troca de idéias com os leitores - para concluir com um conselho positivo, “é possível sair da tua mediocridade, explore mais sua beleza, sua indefinida sexualidade”...

Pra completar, num dos emails o cara se despede com ... um beijo (?). É ruim, hein?

APR

Confirmado: Diple, DJ/Produtor, parceiro da badalada M.I.A. vai estar presente no Abril Pro Rock desse ano. Gostou? Então escolha uma roupa leve, sapatos confortáveis e caia nos pancadões do rapaz. Esse ano a sexta-feira do festival está para os pés de valsa.

domingo, março 05, 2006

Sem Juízo

Ryan Larkin é o nome de um ex-animador canadense que foi indicado ao Oscar e tornou-se referência no mundo dos filmes desenhados. Sobre ele foi feito um documentário (Ryan, de 2004) bastante perturbador, com recursos de 3D com ares de caricatura hiper realista espiritual (!?). O detalhe importante é que Ryan, no auge da sua carreira, despencou num abismo de álcool e cocaína que o tornou um mendigo igual a tantos outros nas ruas de Toronto.
Num dos depoimentos, do produtor executivo dos filmes de Ryan, uma chave-mestra: “Como tantos artistas Ryan tinha medo de perder o juízo”. Muitas vezes abrimos mão de muitas coisas, jogamo-las fora pelas janelas da vida para manter nosso senso de equilíbrio entre a fantasia, o desejo e a realidade.
Das várias formas de arte, a música parece tocar as pessoas mais facilmente e o músico é aquele cara bacana que toca o que a gente gosta de ouvir e nos representa do alto do palco. Sim, por que se sentir representado é a cola que atrai o público. Em meio a bajulações, paparicos, grana a rodo, sexo abundante e elogios fáceis, é muito comum qualquer um perder irremediavelmente seu precioso juízo.
Aliás, nem é preciso ir tão longe. Aqui mesmo na cidade já houve casos em que a fama – pequena, minúscula, quase microscópica – subiu à cabeça de alguns, conduzindo-os numa viagem sem volta ao mundo cego da vaidade e da autodestruição. Amigos traídos, ideais comprometidos e talento desperdiçados pela fama, fatal fama.
Imaginem, camaradas, quando se está no topo do mundo como um Elvis inchado, isolado, sem amigos verdadeiros – apenas assessores puxa-saco – que o ponham no chão e evitem o suicídio da consciência.


Carnavália 1

O Porto Musical seguido do carnaval é um verdadeiro teste para a saúde da gente. Esse ano devo ter perdido alguns milhões de neurônios torrados pelo sol ou largados nas ladeiras da vida.
O Porto cresceu significativamente esse ano, o que expôs alguns problemas de conceituação – a temática é tão ampla que se dilui na extensa programação em relatos de experiências pessoais nem sempre interessantes – e formatação – seria ótimo ter debates mais longos, com bons mediadores, aprofundamento dos temas e interação maior com a platéia... do jeito que está, tem-se muitas vezes a sensação de que nada ficou depois de uma hora de monólogo e colocações fragmentadas da audiência. A falta de um tronco conceitual também se reflete na programação dos shows que esse ano foram demasiadamente irregulares. Os vazios na Praça do Arsenal eram um claro demonstrativo de que faltou pegada em alguns grupos para manter o público atento.
O evento é jovem – essa é apenas a segunda edição – e deve melhorar com o tempo e os ajustes necessários.
A parte boa foi possibilitar o encontro de músicos da região com profissionais de porte internacional – não é todo dia que a gente esbarra com o programador do Barbican Center, de Londres, ou do mega festival Dinamarquês, Roskilde, nas ruas do Recife –, resultando em convites para shows e articulações de lançamentos de discos no mercado exterior.

Carnavália 2
Vazio de público também estava o Rec Beat, numa das mais equivocadas programações do festival, referência sólida do carnaval recifense. É inexplicável a presença de um grupo de cover dos Beatles ou aquele estranho sopro de rock progressivo e o horrível arremedo tecno no palco do festival que costuma ser tão bacana.
Entre os acertos, veteranos como Riachão e o Carimbó Uirapuru ou os óbvios Nação Zumbi, Eddie e Academia da Berlinda, tiros que nunca erram no gosto do público. Faltou ousadia e espero ansioso por uma programação mais inspirada no ano que vem.