sexta-feira, maio 07, 2010

Diario da Dinamarca #2

Acordei tarde hoje e talvez a razão talvez seja ter comido as nove da noite. Coisa leve: carne e salada. Mas carne a noite nunca eh uma boa idéia pois a digestão eh lenta e gera pesadelos dignos de Goya. Foi o meu caso!
Sonhei com aberrações, imobilidades, doenças da alma, mutilações no corpo, sonhei com um gibi ótimo que na melhor parte da historia terminava e eu jamais saberia o final. Sonhei que todos os meus irmãos fumavam compulsivamente e nossos encontros familiares eram envoltos numa espessa nuvem de tabaco para completo desespero dos meus pais. Sonhei que, finalmente, a casa era realmente assombrada – isso me fez feliz pois a falta de contato com o sobrenatural sempre me deixou frustrado – e vultos chiando como um vento atravessavam a porta fechada do meu quarto.

Ainda zonzo, com meu estoque de comida findo – resta apenas aquele pão estranho, meio doce,meio salgado, bem granulado e massudo, “schwarzsbrot” eh o nome do danado – não tive outra opção senao fazer um café preto e tomar puro para por as idéias no lugar e começar o dia.

Mais assustador que os pesadelos foram dois espirros que saltaram repentinamente de mim. Apesar de não ser nem um pouco hipocondríaco, me pelo de medo de pneumonia nesse frio miserável. Ou melhor, fico mesmo eh com medo de cair doente e estar sozinho sem ninguém para cuidar e ainda por cima perder minhas gigs.

Anotar no caderninho: conhaque e limão.

Talvez fumar menos... O cigarro que tenho fumado aqui se chama KING’S eh livre de aditivos orgânicos, dando a idéia que seria um cigarro saudável. Foi esse o slogan usado na época do lançamento. Obviamente, o anuncio foi proibido.

Anteontem foi um grande dia! Pra começar, encontrei meus amigos Shack e Carla, ele DJ dinamarquês, ela cantora brasileira. Eles moram a três quadras daqui e la fui recebido com aquele carinho nordestino, portas abertas, cuidados, palavras boas, abraços e beijos. Shack me ofereceu uma bike mas era grande demais para mim. Quero dizer, dava pra guiar mas não era exatamente confortável. Talvez seja melhor assim, sou muito aéreo, perco as coisas facilmente, sempre pensando em algo que não esta ali e a possibilidade de fazer um merda no transito se eu estiver com uma bike sozinho, sem um guia, eh muito grande.
Sai de la com um casaco quentíssimo que mudou radicalmente minha vida. Parece que estou vestido numa armadura mas tornou-se obvio que minhas fraquezas repentinas, um certo cansaço vindo de não-sei-onde, era resultado do frio do qual meu belo e elegante Gianni, 100% pele de cordeiro, não evitava. Na noite, Shack me levou para um city tour pela cidade dentro de um carro com aquecedor no talo. Fomos nos clubs principais da cidade, conheci o Simon, que já foi um dos maiores DJs de Copenhagen, com um mixtape estourado e espécie de pop star local. Esse ano ele vai mixar num dos palcos do Roskild, um dos grandes festivais da Europa, usando como matéria-prima, as bandas que por la já tocaram, ou seja, quase tudo de relevante nesse mundo ocidental incluindo o papai aqui.

Conheci também Daniel, entusiasta de musica, dono de um restaurante com pista de dança que me convidou para tocar na próxima quarta-feira acompanhado pelo percusionista do Junkyard, um dos grupos com quem devo interagir. Fiquei em estado de pura felicidade. Vamos inaugurar um palquinho que será montado por esses dias.

Com a rede de contatos aumentando, meu preconceito e medo em relação a cultura local caiu bastante. Estou cada vez mais a vontade e certo que que a temporada vai ser boa. Já se passaram 6 dias e, pensando bem, vai ser rápido, talvez ate eu sinta que devesse ficar mais um pouco no momento da partida.

Ontem, outro grande ganho na qualidade de vida: a dona da casa me informou que tem uma cortina na janela, tão discretamente posicionada que eu não havia percebido. Agora tenho mais sensação de privacidade e nada de luz da manha. Posso dormir tranqüilo e sentindo-me protegido dos olhares das janelas dos prédios ao redor. Pequenas coisas que fazem diferença...

Devidamente encasacado, sai pra passear e flanei pelas ruas da cidade, lindamente. Mais um detalhe favorável: achei meu ipod que estava no fundo da mochila. O dia era de sol – embora o vento frio não desse trégua – e as ruas estavam cheias de pessoas fazendo compras, passeando, tirando o mofo, correndo... enfim, vida!! Nos imensos calçadões do centro da cidade, toda a sorte de artista de rua tentava encher o chapéu usando de sua perícia. Um Michael palido e desengoncado divertia adolescentes, uma mulher coberta de branco fazia-se estatua, cantores de country, blues e folk escandinavo também tentavam uns trocados animando o enorme fluxo de gente que circulava no local.

LUVAS, baratas, combinadas com o casaco e o cachecol me tornaram um homem independente, um aventureiro sonhador e disposto a qualquer aventura. Nem neve, nem granizo, nem tempestades ou tizunamis são capazes de deter esse Sir Richard Burton tropical.

Ontem tive que retornar a uma papelaria pois comprei um caderninho preto de anotações e ele veio cheio de palavras em “árabe”. Vandalismo de algum moleque. Troquei na boa, sem problemas... mas, falando nisso...

Do outro lado da rua, bem na frente da minha janela tem uma espécie de creche e atrás, uma quadra de futebol. De vez em quando, especialmente no fim da tarde, jovens mulçumanos se aproximam do local de carro, abrem o porta-malas e detonam hits de house music e hip hop enquanto batem uma bolinha. Meu amigo dinamarquês, gente finíssima e viajado, disse que esse bloco eh barra-pesada e um dos motivos eh esse. Os outros são furtos de bicicleta e a fama dos “árabes” serem batedores de carteira, único crime grave registrado com freqüência por aqui. Alguns dos blocos ao redor também são majoritariamente ocupados por imigrantes que formam uma comunidade unida e trabalhadora. São eles que fornecem kebabs baratos, frutas frescas e bebidas para os decadentes europeus cachaceiros. Gente pobre, não se preocupam em contar a família e procriam que eh uma beleza em oposição a sobriedade europeia que tem uma taxa de crescimento em níveis preocupantes.


Fodidos e explorados pelos europeus, esse povo de passado glorioso se vinga lentamente. Como um fogo lento vai consumindo, tomando os espaços que lhes foram roubados por anos de colonização, intervenções internas, delapidacao cultural e toda o tipo de sacanagem orquestradas por papas e políticos.

Os “árabes” – ou, como se chama por aqui, “cabeças de pano” – são os “novos negros”, os bárbaros, o terror da civilização ocidental. E eu tenho a maior simpatia por eles, talvez por gostar dos temperos, uma razão bastante prosaica e pouquíssimo politizada.

Amanha, parto sozinho para o primeiro show. Tenho que levar meus apetrechos de barbear pois ainda não consegui pensar em como fazer a barba no banheiro local. La, na outra cidade, ficarei num hotel e tudo será mais fácil.