segunda-feira, maio 10, 2010

Diario da Dinamarca #3

Duas peruas dinamarquesas passam na rua, exatamente como personagens de Sex and the City: cabelos escovados, roupas caras e fazendo toc toc com suas botas de grife. Dois garotos “árabes”, vestidos a caráter do melhor estilo b-boy falam alto enquanto discutem alguma coisa que não parece ser grave, uma linda mãe pedala sua bicicleta adaptada com um carrinho de bebe e, la dentro, escondidinho segue sua cria protegida do frio por uma manta grossa.

Um homem sorri para mim enquanto uma ruiva de cabelos cacheados para a bicicleta bem na frente de casa e toca a campanhinha. Logo percebo que vai ter mais um jantar por aqui, fruto da sociabilidade da minha room mate.

Grande parte do meu tempo eh restrito a esse quarto e o mundo não passa de uma janela que abro com freqüência para fumar. Ontem, no domingo, cheguei de um show, o primeiro de muitos que virão, e estava tão feliz e cheio de energia que queria sair, conversar, falar besteiras mas não tinha nenhuma companhia. Comprei uma bebida, baixei um monte de filme e fiquei trancado no quarto enquanto um animadíssimo jantar acontecia na sala.

Sei muito pouco ou quase nada sobre a pessoa que me alugou esse lugar apesar de estarmos sobre o mesmo teto. Isso eh bem comum por aqui – quero dizer, em toda a Europa. Não consigo me imaginar agindo desse jeito no Brasil, mesmo que eu alugasse uma parte do meu apartamento exclusivamente por dinheiro. Nosso caráter eh gregário, moldado por uma cultura complexa que nos ensina a se envolver com estranhos e abraça-los como irmãos ao mesmo tempo em que se cultiva a fofoca e a bisbilhotice, instituições que andam de mãos dadas com a intimidade. Aqui, sabe-se e leva-se a serio a máxima que “intimidade eh um caminho sem volta”. Melhor evitar!

No sábado fui para Odensa, um vilarejo a pouco mais de uma hora de Copenhagen. Tive meu momento de orgulho pois chamei o táxi por telefone – dois minutos depois ele estava na porta de casa -, comprei as passagens e cheguei na estação certa. Muito bom para um leso confesso que nem eu, cabeça-de-vento assumido, aéreo como um balão...

Sentei-me numa poltrona larga e confortável com um travesseiro azul para encostar a cabeça. Na minha frente, uma senhora lia um livro em espanhol, ao meu lado, um homem grande resmungava diante de uma revista de ofertas, típicas de trens e aviões. Mas o meu primeiro interesse caiu sobre a bela mulher de quarenta e poucos anos, largada na poltrona em diagonal com a minha, muito elegante, que deixou escorrer uma lagrima redonda como uma bola de gude, quando o trem começou a se mover. Enxugou-a com gestos de Catherine Deneuve, discretamente chique. Volta e meia olhava-a com o rabo do olho, curioso em saber a origem da lagrima. La pelas tantas, ela dormia de boca aberta, emitindo um ronco suave que demonstrava que saiu o espírito de La Deneuve dando lugar a Didi Moco.

Viagem entorpecida pelas paisagens pálidas e sem majestosidade, coisas da vida no campo sob a luz mortiça da tarde. Nada pra fazer a não ser observar ao redor: do outro lado do corredor, uma mulher enorme de gorda acariciava as mãos de seu par, um homem magérrimo e com os braços cobertos de pelos claros, aparentemente um espécime raro nessa terra imberbe. O bilheteiro era um senhor com certa idade e um ar completamente feminino. Entendam: não gay mas feminino mesmo, como se o tivessem posto no corpo errado. Pouco antes da chagada puxei assunto com a senhora sentada na poltrona da frente e ela revelou-se uma viajante solitária, sensível e de conversa fácil. Tinha olhos cansados e ar de quem viveu muito mais do que o que podia ter vivido.

Chego na estação: uma italiana de sorriso tímido e uma garota de dreads me esperavam. Contato visual feito e já sabia que seriamos amigos. A coisa melhorou no local do show: uma mulher de origem italiana, a organizadora do evento, esbanjava simpatia, gosto por conversar e aquele sentimento raro – da minha seita favorita – de quem ama musica acima de qualquer coisa. Some-se isso ao fato de surgir mais um nome no grupo: Lotte, dinamarquesa loirinha, jovem e também de dreads, acompanhada por um pro-seco italiano que foi compartilhado com generosidade entre o grupo.

Estava me sentindo em casa pela primeira vez! Passei no hotel, menos para descansar, mais para fazer a barba pois ainda não consigo imaginar como me barbear nesse banheiro minúsculo e apertado da casa. Deve haver um jeito! Minha técnica para tomar banho melhorou bastante: empurro a cortina com a cabeça, me ensaboou e ao mesmo tempo sinto a água quente, fervendo, nas costas.
Se sair debaixo da água quente bate aquele frio insuportável e junto vem a tristeza que surge sorrateiramente como um gato a quem se oferece um peixe.

Tomei banho, fiz a barba, dei uma cochilada e resolvi voltar ao lugar do show mesmo sendo muito cedo. De qualquer modo la estavam minhas novas amigas, havia outros shows e gente para olhar, conhecer, pois as atrações eram tão diversas que grupos sociais bem diferentes compartilhavam do mesmo ambiente. Havia uma banda que usava verdadeiras raridades analógicas, como um mooog original, um inovator, filtros antigos, mesas do tempo do comecinho do kraftwerk. O som era incrivelmente bonito, timbres clássicos de sintetizadores mas a musica era horrível e sem imaginação. Coisa de quem gosta de equipamento e não de musica. Na seqüência, um proto-Bowie, de cabelo laranja, magro como um tuberculoso e com trejeitos andróginos berrava que “para você ser uma celebridade tem que deixar de lado a dignidade”. Boa desculpa para seu fracasso pessoal, pois certamente seu sonho era estar num grande palco, viajando pelo mundo, transando com homens e mulheres e não ali, numa cidadezinha perdida no interior da Dinamarca. O fato, muito simples de entender, eh que ele não tinha o menor talento. Tinha pose e look. E ponto.

Oliver Sacks em seu livro, “Alucinações Musicais”, descreve varias pessoas que por causa de algum trauma mudaram sua relação com a musica. Tem o critico que passou a ter fobia de musica e, entre outros casos, tem o cara que levou um choque e desenvolveu ouvido absoluto, ou seja, a capacidade de distinguir cada nota.
Esse homem passou a tocar piano com perfeição técnica, chegou a dar concertos e mudou completamente sua vida por causa da estranha e repentina paixão por musica clássica. Mas,apesar da técnica impecável, do ouvido absoluto, ele não parecia ter talento, essa coisa magica e inexplicável que reúne mais que a capacidade técnica, mas tambem empatia, vivencia pessoal, neuroses e sei la mais o que.

Quando o primeiro disco de Ed Mota foi lançado, Tim Maia dizia que ele não era bom interprete de soul pois “era jovem demais e não tinha levado chifre suficiente para saber o tom do sofrimento”.
(Ou coisa parecida, escrevo de acordo com o que ficou na memória...)

Esses shows aconteceram do lado de fora e eu me sentia de volta aos anos oitenta com suas roupas coloridas, enormes sobretudos, cabelos fosforescentes, gestos afetados e pose visivelmente fake em demasia.
Mas era um bom circo!

No palco interno, dois cantores – um com um mullet de tempos imemoriais, outro com jeito de quem fugiu do escritório de contabilidade – tentavam animar uma platéia de saltos-agulha e homens sem nenhuma pré-disposicao para o balanço no corpo. Hilário como uma festa de novela onde os figurantes fingem que estão se divertindo.

Marisa contou-me que, particularmente, ela não gostava daquela banda mas que salsa eh um ritmo muito popular na dinamarca, portanto la estavam eles para agradar a audiência.

Quando comecei a tocar o salão, que havia se esvaziado, logo encheu e a festa foi super boa. Durou mais tempo do que normalmente gosto de tocar. Usei minha técnica de DJ experiente: escolhi as minhas novas amigas e toquei para elas, tornando-as meu termômetro particular que indicava se aquele caminho era bom ou ruim. As garotas mais jovens, Ananda e Lotte, dançavam alegremente uma com a outra com aquela energia juvenil que certamente nunca mais terei. Trágico como sempre, me lembrei de Nelson Cavaquinho, que via nas flores seu futuro enterro. Pensei como a juventude eh um dom incrivelmente belo e como a vida a desfaz com seus medos, dores e ilusões. Garotas, aproveitem ao maximo!!! Como na musica dos Meeters “ Be fool, be young, be happy”

No fim da noite – eram três da manha – fomos nadando para o hotel e me despedi delas com uma sensação ótima de ter estado cercado de gente acolhedora e gentil.

Hoje, por acaso, encontrei Shack e fomos passear pelos cafés, cruzamos o cemitério e ele me mostrou a galera das gangues locais, arruaceiros típicos, rivais dos Hell’s Angels a ponto de traçarem tiros em nome da diferença.
Mas nada que se compare com a nossa velha e forte violência domestica genuinamente brasileira.

Agora estou em casa, faz um frio danado mesmo com o aquecedor no maximo. Me pergunto o que houve. Será que esta quebrado? Será que o aquecimento central foi desligado porque eu usava muito forte? Será que eh porque eh caro? Diante da distancia com minha room mate, diante do meu desconhecimento das regras locais, não sei como aborda-la para resolver essa duvida. Alguem tem uma sugestão?

4 Comments:

Anonymous Anônimo said...

que texto fluído...muito bom meu caro! abs

6:31 PM  
Blogger Isabela Pinho said...

o agradavel calor da matereologia e da pele te aguarda na rua da aurora.

7:36 PM  
Blogger Bela said...

Que saudade que dá de tu ao ler tuas histórias! Feliz é tu que tem a música como língua: no final, todos se acham, não interessa onde!
Agora quanto ao frio, chega eu me congelo de imaginar. Boa sorte! Abração pra te esquentar!

10:33 AM  
Blogger Bruno Portella said...

O nome é Bruno, pq tem conta no gmail, mas quem escreve sou eu. A mãe.

Já resolveu o aquecimento? Não tem outro jeito, tem que perguntar... algo assim: "desculpa, não sei se estou doente, febril talvez, mas desde ontem sinto mais frio do que de costume. Antes de procurar um médico, queria saber se você acha que o aquecedor pode estar com algum problema..." Que tal? Beijo, meu lindo, o diário é tudo de bom, go ahead. Ana Paula

3:50 AM  

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