sábado, maio 15, 2010

Diario da Dinamarca #5

Perdi minha verdinha... me foi dada com carinho e com afeto, como um doce predileto, embrulhada num papel prateado, uma promessa deliciosa. A verdinha eh boa para muitas coisas, uma panacéia de fato: glaucoma, depressão, tristeza, tédio, males de amor e derrota no futebol; a verdinha alimenta a vida, aumenta o tesão e da fome.
Procurei-a por todo o quarto, nos cantinhos, nas meias sujas, na sacola de lixo, vasculhei no fundo da memória, nos bolsos da mochila e em compartimentos da mala dos quais nem sabia da existência.
E nada...
Estará embaixo da cama? Sob algum dos Cds que eu trouxe? Foi-se para sempre, como minha juventude: num piscar de olhos!
Ah, essa verdinha que alegraria essa noite fria e me trataria como uma amante ciumenta, tomando-me soh para si, levando-me noite adentro em sonhos estranhos e dando-me em troca, inspiração.
No dia seguinte, lembrei: estava dentro de um pacote de cigarros que eu tinha posto no lixo.
Adeus, minha adorada...

Anteontem foi dia de festa – algo agendado de ultima hora, em completo improviso - e a noticia que eu tocaria atraiu a atenção da comunidade brazuca local, ou melhor, das brasileiras. Alguem notou, passou um torpedo para outra e logo a rede de comadres estava formada. La pelas onze da noite começaram a chegar as mocas, a maioria solitárias, embora algumas trouxessem maridos e namorados a tiracolo. Um único brasileiro homem alem de mim era uma espécie de travesti moreno de formas delicadas, louco para se jogar no baile funk.
Ah, essa mistura de doçura e safadeza, de fragilidade e determinação, de ingenuidade e sabedoria intuitiva nata que tornam as brasileiras completamente irresistíveis para o homem europeu, envolvido numa verdadeira guerra de sexos, herança da cultura feminista de emancipação. Some-se a isso um fato importante: as mulheres as que me refiro não vieram estudar, construir uma carreira ou, como turista, gastar dinheiro numa utopia escandinava. Em sua maioria são pessoas simples, de origem humilde, sem muitas chances em seu pais de origem, sem perspectivas de vida senão através do homem branco e bem sucedido que realizaria seus sonhos de Cinderela. Destituídas de educação formal, economicamente não competitivas, concentram sua energia na forca vital da sedução e a pista de dança eh o terreiro apropriado para que um antigo ritual primitivo se renove. Envoltas em roupas justas que potencializam seus corpos carnudos e curvilíneos, com gestos universais que dizem muitos mais que palavras, elas evocam um sabath contemporâneo como poderosas feiticeiras que encontram na dança a fuga de um mundo que costuma frequentemente subjuga-las.
Dessa vez toquei para elas e sem nenhum pudor de mixar funks e tecnobregas com tracks obscuros e bootlegs perdidos, de faze-las felizes e, consequentemente, contaminar o resto do ambiente. Num certo momento notei que uma delas discutia com o namorado, de cara amarrada, chocado com a espontaneidade sexy da dança. Queria eu poder traduzir Chico Buarque para o dinamarquês e oferece-lhe um conselho de amigo: “por isso para o seu bem, ou tire ela da cabeça, ou mereça a moca que você tem”.
(não posso deixar de lembrar de uma passagem de “O Buda do Subúrbio, de Hanif Koreishi, quando o pai do protagonista, um indiano picareta que se faz de guru dos ricos ingleses, aconselha ao seu jovem filho: “Acumular cultura, ter sabedoria, nada disso importa, o mais importante eh ser sedutor”.Cito de memória, talvez não seja extamente assim, mas eh desse jeito que lembro.)

No final ainda rolou um back to back – quando dois DJs tocam juntos mixando sua musica com a do outro – com o Anders que não tirava um enorme sorriso dos lábios.
Noite divertidíssima e despretensiosa, sem egos, todos em harmônica comunhão.

Varias vezes me perguntei qual a função de um DJ. Seria demonstrar técnica, intelecto, representar um estilo, traficar canções, fazer as pessoas pensarem? Minha resposta atual eh: tudo isso mas, prioritariamente, entreter o publico. E não ha nada que me agrade mais nesse trabalho que ver uma audiência inteira se entregar de corpo e alma a uma faixa que nunca ouviu e provavelmente não ouvira de novo por ser completamente deslocada de sua cultura.

No começo da tarde do dia seguinte tentei me perder em Copenhagen, andei as cegas sem prestar atenção ao caminho, apenas flanando entre os pedestres como aquele personagem descrito por Edgar Alan Poe em “Um homem na multidão”. Mas por mais que eu me embrenhasse nas ruas curvas e becos estreitos do centro da cidade sempre me via de volta a um lugar conhecido, a uma referencia já vista, ao caminho de casa.
As cinco, Marisa me ligou avisando que estava em Copenhagen e fomos nos encontrar num café que tenho freqüentado quase diariamente. Logo Anderrs se juntou a nos e entre rodadas de cerveja, café, armanhaque e Jameson, resolvemos alguns problemas do mundo, aprendemos novos palavrões, conhecemos novas musicas, filmes e terminamos a noite no Saxon’s, um antigo bar de reggae e hip-hop, hoje tomado pela molecada do dubstep.
O dubstep eh um estilo muito ligado a cena de Londres. Filho eletrônico do reggae, so eh possivel por causas das maquinas capazaes de produzir freqüências extremamente baixas daquelas que, literalmente, sentimos no corpo como uma massagem. Na inglaterra fui a clubs especializados, basicamente freqüentado por uma molecada chapada que balança a cabeça e move o corpo devagar, em precário equilíbrio. A lentidão dos tracks e o experimentalismo de alguns DJs fazem do estilo uma musica pra dançar mais com a cabeça que com o corpo.

No Saxon’s lotado por uma faixa etária em torno dos 18 anos, pouca chapacao e muito hype. Não eh a toa que me fez lembrar de São Paulo e suas cenas mal clonadas, falsas como os peitos de uma celebridade televisiva.

Peguei o trem para Arhus com o objetivo de participar de um festival de literatura. Rodrigo, o cara que me convidou e planejou essa viagem, mora lah e foi me buscar na estação para irmos direto ao pequeno teatro onde o evento se realizaria. Desde o primeiro contato com os organizadores senti que tinha caído numa roubada. Minha impressão era que tanto produtores quanto atrações tinha aquela mania irritante de cultivar um mundinho “artístico” que tanto detesto e desprezo. Aquele tipo de ghetto punheteiro, aquela atitude medíocre e mesquinha de se refugiar na “arte” como algo puro, milhas alem do mundo la embaixo, arte como status intelectual e superior, arte separada da vida. A aparência nunca mente: os caras se vestiam como se estivessem num jazz club da década de 50 ou numa academia russa, molhando o bigode de cha acompanhado por Gogol. Barbas estapafurdias, sobretudos de brechó, boinas francesas, olhar e fala grave somado a um bovino ar de superioridade intelectual.

Na mesa, cercado de cuzoes, pela primeira vez encarei a grosseria dinamarquesa: ninguém dirigia a palavara a mim e falavam apenas em sua língua, com gestos definitivos de quem estavam descobrindo alguma grande verdade. O pior eh que eu estava quietinho no meu canto, lendo um livro, e foram eles que insistiram para que eu me juntasse ao grupo!

Chegar em Arhus deu um enorme trabalho: três horas de trem carregando uma mala pesada, sem cachê nem hotel. Eu deveria ficar hospedado na casa de um dos voluntários que so iria embora no fim de tudo, lah pelas duas da manha. Por acaso eu também era a ultima atração e ainda eram seis da tarde. Rodrigo muito gentilmente ofereceu-me um pouso em seu apartamento, onde pude dar uma breve cochilada e, feito isso, voltei ao ninho dos bárbaros. Meu amigo Jack (Daniels) me aguardava por lah.
Alguns bebem cerveja, eu bebo uísque ou bourbon no mesmo tipo de copo e na mesma quantidade, cheio ate a borda. Depois de meio copo eu estava pronto para circular, tagarelar e, quem sabe, descobrir alguem bacana naquela poça de merda.
Acho que estou doente de bomhumorismo crônico pois nada alem de sono ou cansaço tem me abalado, então acabei me divertindo, mesmo quando um clone pretensioso e sem graca de Fausto Fawcet subiu ao palco para derramar no publico sua auto-indulgencia (“eu era herói quando os heróis costumavam vencer, bla, bla, bla...”). com uma dramaticidade afetada ele jogava no chão as paginas lidas de sua “obra”, lambia o dedo para vira-las – ah, como eu queria um Humberto Eco aqui, para por arsênico no papel e ai sim, teríamos um show de verdade! – fazia sons estúpidos com a boca e, acreditem, havia gente interessada naquela baboseira. Tem gosto pra tudo, pro bem e pro mal.
No camarim, puxo conversa com um senhor negro que la estava, sentado no mesmo lugar, posição ereta, terno escuro de onde saltava um inesperado chaveiro com uma zebra de pano na ponta. Cabelos brancos, olhos acinzentados, mãos firmes sobre os joelhos, tinha um impressionante ar de dignidade que me chamava atenção ha horas e soh depois de botar a timidez para correr, perguntei para ele se era musico ou autor, no que ele respondeu que iria tocar e ler seus poemas.
Sem saber eu estava diante de Henry Grimes, multinstrumentista que tem em seu currículo, colaborações com grandes nomes do jazz como Gerry Mulligan, Sonny Rollins, Thelonious Monk, Benny Goodman, Charles Mingus e Don Cherry, entre outros. Uma verdadeira lenda viva de 75 anos de idade! Muitas imagens devem ter passado no espelho de sua íris, mudanças de costumes, pobreza e luxo, fama, multidões, sortes de varias naturezas... como eu gostaria de ver o filme da sua vida, os ensaios, os rostos do publico e suas roupas que cambiavam com o tempo, clubes, lagrimas de alegria e tristeza, descobertas e inquietações que nem conseguimos sequer imaginar, chegadas em terras distantes, despedidas, perdas e, claro, as mulheres olhando de volta, encantadas pela musica sublime.
Penso nos cheiros da comida de infância de sua Filadélfia natal, nos perfumes e camarins empestados de fumaça e suor e a doce frangrancia das estações em diferentes partes do mundo.
Sua manager tinha uma completa e estranha devoção por ele e conversando com os dois, defendi as possibilidades positivas da internet como meio de espalhar cultura, obviamente, não os convenci mas, em certo momento e, apesar de reclamar do youtube, ela me mostrou orgulhosamente a quantidade de vídeos sobre ele naquele site.
Quando comecei meu show já não havia quase ninguém na platéia mas Rodrigo, ja um pouquinho alto pela cerveja, e sua namorada estavam la e bem animados. Toquei para os dois que dançavam - como na musica de Van Morrison - “the way young lovers do”.
Para mim essa viagem não trata de carreira ou dinheiro mas de auto-descoberta e reaprendizado, então adorei retribuir a gentileza de duas pessoas que me trataram tão bem e com um carinho que suspeito não merecer.

A noite ainda me traria Anna, minha anfitriã, que me levou para casa – segunda vez que ando em carro particular na Dinamarca pois ninguém precisa disso por aqui -, ofereceu-me sua cama quente e confortável e ainda tocou double bass para alegrar esse velho senhor.
No dia seguinte acordei so e um pouco aperreado. Onde estará Anna? Tento esconder essa pergunta e manter-me calmo diante de um lugar que não conheço, isolado e perdido num condomínio residencial, numa terra estranha e fria. Bebo água, vou ao banheiro e tenho uma grande surpresa: alem da cama de Anna ser a melhor ate agora, seu banheiro eh grande, aquecido e confortável. Tomo aquele longo banho, demoro-me curtindo a água, o calor, a sensação de limpeza e, diante disso, o dia parece sorrir cheio de bons ventos. Ah, mais uma coisa: havia um espelho grande, de modo que pude observar meu corpo por inteiro, coisa que não fiz desde que cheguei. Acho que não engordei e arrisco ate a dizer que a barriga esta encolhida apesar dos kebabs e das massas.
Minha anfitriã retorna meia-hora depois e inicia um belo ritual de café da manha.

Na ida a Arhus, uma coisa me encantou no trem: o homem que vendia comida e bebida era um senhor grisalho, sorridente e de extrema gentileza. Depois de passar com o carrinho pelo meu vagão, ele retornou trazendo uma pêra sobre um guardanapo vermelho, apoiado em suas mãos em concha. Seus movimentos eram de absoluta perfeição estética, como se levasse uma oferenda para algum Deus, como se o futuro da humanidade residisse naquela fruta. Admirei-o, invejei-o, pois sei que nunca conseguirei carregar uma fruta com tamanha elegância.

Anna me fez lembrar esse homem pois ela também movia-se com precisão e detalhe dentro da pequena cozinha, pondo paes no forno, descascando e espremendo laranjas, arrumando a mesa e montando uma cestinha para quando os paes estivessem quentes. Em nenhum momento uma sombra sequer de rudeza ou aflição, uma pequena e bela coreografia particular num cenário banal e cotidiano.
Sua gentileza infinita fez-lha me levar ate dentro do trem, ajudar-me a por a pesada mala na prateleira sobre meu assento e soh então nos despedimos.
Voltei tendo a frente um homem grande e entediado e, de lado, uma adolescente estourando espinhas diante de um espelho portátil e ouvindo hop-hop tão alto que eu conseguia distinguir cada uma das faixas.

Comprei um gravador pequeno, de alta definição, bem poderoso – eh como um binóculo sonoro! - e meu hobbie agora eh gravar sons ambientes com o objetivo de fazer um soundscape, uma paisagem sonora, como jah fiz quando visitei Cuba pela primeira vez. Com ele posso ouvir alem do que o ouvido alcança. Na noite que parece silenciosa ouço crianças falando na vizinhança, cachorros, sons monocordicos de tv, risos, copos brindando, talheres sendo depositados em pratos, vozes, pássaros cantando... enfim, descubro que na escuridão ha vida e que a vida segue por ai, independente do que nos aconteça.

2 Comments:

Blogger almaboa said...

LONGO MAS BOM !

9:21 PM  
Blogger Johsi Guimarães said...

Binóculo sonoro é ótimo!..adorei a leitura!

10:24 PM  

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