quinta-feira, maio 20, 2010

diaria da dinamarca #6

Domingos são longos e desérticos e, lembro-me que, certa vez, quando me recuperava de um profundo estado de depressão, recebi um telefonema – dez horas da manha de um primeiro dia do ano - de Lulu Santos e ele disse “eh preciso atravessar nossos desertos com serenidade” (pop como sua musica). Sigo seu conselho e decido ficar soh nesse dia da semana que tanto me afeta desde que me entendo por gente.

Como tenho de viajar de novo na segunda-feira, incremento meu domingo com duas aventuras adiadas ha algum tempo: fazer a barba e lavar as roupas acumuladas em 15 dias fora de casa.

As mulheres e alguns homens afortunados não entendem como pode ser complicado fazer a barba quando se tem pelos grossos, firmes em sua vontade de crescer e se multiplicar numa pele sensível. Vou ao banheiro e planejo meticulosamente como executar essa tarefa dentro das dimensões e condições do banheiro da casa.

Separo o estritamente necessário, que consiste em espuma de barbear, um aparelho descartável, toalha e sabonete.

A melhor hora de se barbear eh na parte da manha pois os danados dos pelos ainda estão sonolentos e de bobeira, então fica mais fácil e menos doloroso remove-los.

A primeira etapa dessa ação eh entrar no chuveiro, tirar toda a oleosidade do rosto com sabão e, na sequencia, ir para frente da pia onde estarão as ferramentas necessárias para realizar tal complexa operação.

Primeiro passa-se a espuma de barbear pela parte que deve ser raspada, depois simplesmente usa-se a lamina com movimentos suaves e sem muita pressão para que ela faca sua parte e deixe o rosto liso como o de um bebe.
A maneira mais eficiente de fazer a barba eh cortar os pelos no sentido contrario ao seu crescimento, removendo-os o mais perto possível da sua raiz.

O primeiro obstáculo eh que, por causa do tamanho do banheiro, todo o vapor da água quente se acumula no espelho, embaçando-o terrivelmente e atrapalhando todo o trabalho. Por isso a presença da toalha ao alcance das mãos, com o objetivo de enxugar o vapor e tornar a imagem do espelho a mais límpida possível.

O possível, nesse caso, eh uma mancha que parece vagamente comigo, um borrão onde se distingue os olhos escuros, a espuma branca e um espaço cor-de-pele. Não ha sutilezas nessa geografia facial: o monte que seria o nariz não se destaca e muito menos as rugas ou os pequenos sinais que marcam meu rosto.

Com paciência executo a tarefa e vejo pequenos pontinhos pretos ocuparem o espaço da pia. Então surge o segundo problema: eh preciso retira-los de la com calma e atenção mas isso soh será feito quando a primeira etapa for concluída. Um pouco de tato ajuda a identificar o que os olhos não conseguem ver no espelho e pouco a pouco estou barbeado.

De volta ao chuveiro, sinto a água escorrendo sobre a pele lisa, um prazer imenso, uma espécie de limpeza espiritual!!

O banho segue ordinário como qualquer outro banho mas o fim so chegara posteriormente com a limpeza completa do chão, com auxilio de um pequeno rodo e a eliminação total dos vestígios de pelo sobre a parte interna e bordas da pia.

Contente por ser bem sucedido nessa empreitada, começo a sonhar com a próxima, de nível de dificuldade maior, que eh cortar o cabelo com a maquina que trouxe comigo na bagagem.

Agora, a segunda atividade do domingo: lavar as roupas. Antes, combino o almoço com uma batida de campo para que nada de errado. La esta ela, a lavanderia com suas potentes maquinas industriais que molham, torcem, enxáguam e secam com perfeição. Ainda bem que na época e no lugar onde Cartola morava não havia nada disso ou teríamos perdido uma das mais belas musicas do cancioneiro brasileiro: “ensaboa, mulata, ensaboa; ensaboa, to ensaboando...”
Confiro se esta aberto, se tem muita gente, se as maquinas estão funcionando e descubro que esta tudo OK.

Tenho fé que as coisas vão da certo!

Me dirijo a um restaurante especializado em saladas, a coisa mais próxima de um self service brasileiro, por aqui. As porções ficam expostas, protegidas por um vidro e escolhe-se o que quer, na quantidade desejada. Brócolis, cogumelos ao molho de tomate, um pouco de cuscuz marroquino e uma porção de pasta de atum. Detalhe que me incomoda bastante por aqui: come-se frio, da salada ao peixe, e mesmo um almoço a la carte não vem da cozinha, sabe-se la por que.

Eu peco para por meu prato no micro ondas por alguns instantes, explico que sou latino, que nos comemos quente e me divirto com a cara espantada do funcionário.
Enquanto espero minha comida, lembro de uma historia que Manu Chao contou-me uma vez, logo que o conheci: ele disse que estava tocando na Espanha, apoiando uma greve dos estivadores, quando rompeu uma tremenda confusão com a policia. O pau cantou feio ate a hora em que a sirene da bóia tocou e, imediatamente, cessou-se a briga e todos – operários e policia - correram para almoçar antes que a comida esfriasse. Comida fria não da sustança, parece que não alimenta e a gente se sente fraco e sem graça.

Levei dois sacos de plástico cheio de roupas sujas, um com as pretas e outro com as brancas. La dentro, aquecedor ligado, tento descobrir como fazer as maquinas funcionarem. Como perdi todas as aulas de dinamarquês na escola, infelizmente não consigo entender as instruções e peco ajuda a uma mulher que, muito pacientemente, me explica o que fazer e ainda por cima me da uma boa quantidade de sabão, detalhe que me havia escapado.

O sincero interesse em ajudar quem precisa de uma informação, a gentileza natural e genuína, o respeito as diferenças que constituem a cultura do pais estão me seduzindo fortemente. Esse comportamento esta no cerne do povo e foi moldado lentamente apos séculos de lutas, derramamento de sangue, brigas territoriais, invasões... eh um pais maduro, onde o estado reflete as aspiracoes do povo e nao de um lider filho da puta, com um espírito de cidadania que se baseia em dois princípios básicos: respeito e confiança.
No cotidiano isso pode ser notado através da absoluta honestidade de comerciantes, taxistas, garçons... e se, por exemplo – se você for brasileiro ou franco-brasileiro -, você quiser entrar num club gatuitamente, apenas diga que saiu para fumar. O porteiro certamente lhe dara credito!

(A roupa acaba de ser lavada e agora eh momento de por na secadora. Para secar, enfia-se algumas moedas num painel e aperta-se o botão com o numero correspondente a maquina. Cada minuto custa um krono, ou coroa, a moeda local.)

Comparado a Dinamarca, o Brasil revela-se um pais grotesco e bruto. Na falta de um passado de glorias, coisa que alimenta e une a idéia de nação,o povo brasileiro se crê gentil quando, na verdade, trata-se da mais pura conveniência preguiçosa. Discutir da muito trabalho...melhor sorrir falsamente! Uma piada contada por um suíço diz que “no Brasil as coisas são assim: não se deve roubar, mas você pode roubar e você rouba; não se deve pegar a mulher do amigo, mas você pode e pega” e a conclusão, entre outras coisas que não se deve e se faz eh que “no Brasil a única coisa que não pode eh ser antipático”.

(E la vou eu, colocar mais 2 kronos na maquina e penso quem inventou esse sistema louco em que não se resolve de uma vez o tempo de secar a roupa, no que um dinamarquês presente concorda sorrindo, “eu também não entendo”, diz ele).

Não posso imaginar como conciliar esse espírito brasileiro, construído historicamente na base da mentira e corrupção com um sentimento de cidadania e dignidade.

(depois de muitas moedas, finalmente minhas roupas estão secas. Sinto o calor e a maciez delas em minhas mãos enquanto dobro-as carinhosamente, orgulhoso de ter superado mais um obstáculo do dia-a-dia)

Voltando a Kapuscinski, ele conta um encontro com um democrata russo na era da perestroika e, em suas argutas palavras, “eh uma vitima voluntária pois se deixou envolver pela problemática comunista” pois “a mente do democrata ocidental move-se com naturalidade por entre os problemas do mundo atual, reflete sobre como viver bem e feliz, o que fazer para que a tecnologia moderna sirva cada vez melhor ao homem e como proceder para estimular o ser humano a produzir cada vez mais bens materiais e espirituais”, concluindo, “ esses assuntos estão fora do horizonte intelectual do democrata moscovita”.

O Estado brasileiro eh tão medíocre que discuti-lo – levando em consideração todos os seus lideres messiânicos, malucos, arrivistas, vaidosos, egocêntricos, personalistas ou, simplesmente, criminosos -soa como afundar numa poça de merda.

(chove fininho e uma parte da roupas, ponha na mochila de costas, enquanto outra parte carrego num saco plástico que balanço ao som da musica gypsy que vem do headphones)

Na segunda-feira, tomo mais uma vez o trem para Ahrus, seguido por um trem municipal ate Bjerringbro onde darei uma rápida aula sobre musica brasileira, das origens ate o presente. Uma introdução, obviamente, para quem conhece apenas o exótico e estereotipado de um pais tão grande e complexo. A paisagem ja eh familiar e aguardo com ansiedade a travessia subaquática do Great Belt, um braço do oceano que divide a ilha onde esta Copenhagen de outra ilha, onde ficam as cidades para onde estou indo e para onde já fui anteriormente.
No escuro do túnel o ouvido reclama, perde-se o contato com a internet – sim, tem conexão dentro do trem!!! – e do lado de fora eh puro breu.

O novo esta no trem seguinte: campos vastos, casas de madeira que aquecem com eficiência e podem ser construídas muito rapidamente, grama verde com pequenas flores brotando como estrelas, bucolismo e paz, como se a civilização não existisse e tudo aquilo não passasse de um filme. Mas, como num filme de David Linch, imagino como será a vida privada dessas pessoas. O que fazem nos interiores de seus lares, que perversões conduzem suas vidas, que desejos secretos as devoram por dentro, o que habita em seus sonhos, qual a real natureza dessas pessoas?

Os turcos usam a borra do café para ler o futuro e alguns vão aos jornais em busca do horóscopo. Números mágicos, nuvens no céu, entranhas de animais, fogo, o desenho que se forma nos troncos de arvores cortados...

Qualquer coisa serve como oráculo. O meu oráculo eh o ipod, no modo shuffle, aleatório e hoje, bons sinais através da doce voz de Ella Fitzgerald:

“From this happy day, no more blue songs,
Only whoop dee doo songs,
From this moment on.”

Seguido por Hyldon:

“Eu vou esquecer de tudo,
das dores do mundo,
não quero mais saber quem fui
mas quem eu sou.”

Promessas boas, tão confiáveis como as enigmáticas previsões de Quiroga.

Sou recebido muito formalmente e levado a escola de musica que fica ha uns dez minutos a pe da estação. La, alunos que terminaram o equivalente ao nosso secundário vão ter a chance de se educarem musicalmente antes de entrarem na faculdade e, finalmente, se definirem como profissionais de mercado.

A escola eh uma espécie de internato, com quartos, cantina, biblioteca, um enorme labirinto asséptico e funcional. Depois de instalado, depois de montar laptop, teclado, depois de por livros na mesa e arrumar a cama, saio para dar uma volta nesse novo ambiente.

Para meu completo estranhamento não ha ninguém nos corredores ou, se ha, eh um gato pingado aqui e outro acolá. Silencio absoluto, apenas quebrado pelo sons de pássaros que vem do jardim, coisa estranhíssima para uma escola de musica! Computadores ligados com acesso a internet, latas vazias de cerveja, maquinas de refrigerante, uma voz trazida pelo vento, tudo isso indica que estudantes estão por ali. Mas...onde?

Tanto o professor que foi me buscar na estação e o que me convidou deram ênfase a hora do jantar: 18:30 – aqui usa-se o sistema de 24 horas. Isso foi repetido, em ambos os casos, mais de uma vez. Quando cheguei no restaurante, estava lotado de cabeças loiras, simplesmente todas as mesas ocupadas e um tímido buffe de dois pratos no balcão, embora que, nas mesas, houvesse bastante comida. Desnorteado, me servi com a comida la exposta e procurei um lugar para sentar dentro do meu campo de visão quando achei um vazio numa mesa ocupada pelo que me pareciam ser indianos.

Pedi pra sentar, no que fui aceito com ênfase fora do comum e, diante da minha timidez, me ofereceram pratos quentes, água e sempre que chegava algo, imediatamente me davam a honra de ser o primeiro. Tentei puxar assunto me indicaram um adolescente sentado a minha frente. Ele falava inglês fluente mas sem sotaque britânico ou americano, esse mesmo inglês internacional, lento e forçando uma pronuncia inteligível que uso.

Conversando, descobri que eram uma família do Sri Lanka, que a mãe dele trabalhava na cozinha e que o filho caçula era motivo de orgulho de toda a família por ter ganho seis mil e tantos Kronos num programa “Talent”, em cadeia nacional na Dinamarca, imitando Michael Jackson.

Depois de comer peguei um dois últimos exemplares que me restavam do meu disco e dei para o moleque que ficou bem feliz, ainda mais porque eu disse que conhecia Diplo, namorado de M.I.A., a grande estrela pop do Sri Lanka.

No quarto, uma questão aterrorizante: seriam todas aquelas pessoas fantasmas? De onde surgiram, para onde forma depois da refeição? O ambiente inteiro da escola cheira a silencio e eh de uma calma pertubadora...

Já de noite, não consigo dormir pois ouço meu coração batendo forte e alto sob os cobertores. A vida atrapalha o sonhos, literalmente, sem metaforas.

1 Comments:

Blogger Beatriz Masson said...

ai, adooooro ler você, assisto esse filme, atenta aos mínimos detalhes, criando meus próprios rostos, sons, vazios, cheiros, sotaques e emoções - minhas - que se fundem às suas, pelas pistas precisas que vc nos dá. é tudo tão cheio de imagem e música, cinema...e ouço sua voz, narrando a coisa toda, putz! delícia. cremosa. vai mandando tudo... muito bom.

9:18 PM  

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