sexta-feira, dezembro 30, 2005

Senhor tempo bom

O escritor romeno Emil Cioran descreve uma louca que “corria atrás do tempo”, para agarrá-lo e retê-lo consigo. Há em muitos de nós um quê dessa mulher, desse desejo de segurar um tempo que passou e não volta mais, uma nostalgia, muitas vezes, sobre algo que sequer se viveu. É dessa matéria que se alimentam os dinossauros da música, perdidos no limbo, expostos como cadáveres articulados no museu da memória.

O mais curioso é que a natureza da música pop é efêmera. Uma canção é feita para durar um verão e ser esquecida até que algum produtor a resgate numa compilação nostálgica ou que aconteça aquele fenômeno bem pop chamado revival. E aí toma-se de assalto o porão dos anos em busca daquela época em que se era feliz e não sabia. Porque é muito mais fácil ser feliz no passado.

“No meu tempo é que a música era boa”, dizem alguns.

“Meu mundo é hoje”, diria o Wilson Batista.

A dance music me fascina pela efemeridade e o desprendimento levados ao extremo. Quem produz não quer entrar para a história, nem se importa com medalhinhas do senhor ministro ou a glória da posteridade, não há pretensões artísticas ou devaneios intelectuais pois a filosofia da pista é pragmática: fazer aquele povo esquecer de si próprio e se entregar à dança. A eternidade dura cinco minutos. E eu gosto!!

Em algumas cenas há uma demanda tão grande por novidades e uma intensa e prolífica produção que a criação acaba sendo intuitivamente coletiva como uma terra de ninguém do direito autoral. Semelhante teia também é trançada na música das ruas e dos terreiros. Com a urgência do hoje e a força de quem conjuga o verbo viver no presente.

quinta-feira, dezembro 22, 2005

Mexico

Pinche Cabron!
"A gente penetra nos países pela música, é como provar sangue."
Pierre Mérot, em "Mamíferos"

O ar frio e seco de Guadalajara soprava uma dica nos nossos ouvidos. Algo estava errado! Ao invés de irmos direto do aeroporto para o hotel, fomos tomar um suspeito café da manhã. OK, estava delicioso como só se faz no México: tortillas com carne apimentada, feijões fritos e suco de frutas. Ali se iniciava uma jornada gastronômica e uma série de atrapalhos que, nos dias seguintes, testaria o poder da minha flora estomacal.

Vou ser breve: estávamos, eu e Lirinha, do Cordel, para performance no festival Dale Beat, em Guadalajara. Dormimos poucas horas e esperávamos uma passagem de som que nunca começava. Nem as quatro, conforme o previsto, e nem mesmo as nove da noite quando, estarrecidos, no lobby do hotel cheio de músicos, soubemos que o evento tinha sido cancelado. O produtor inventou uma história mirabolante sobre homens armados, ETs, elefantes cor de rosa e coisas do gênero. Perdemos nosso tempo, não recebemos cachês mas, OK, estávamos no México. Vamos aproveitar?

Enrique Blanc, que conheci em Sevilha no ano de 2003, morador de Guadalajara, nos leva para a noite apimentada da cidade. Brindamos com Tequila e sangrita, um suco de tomate com pimenta, como tudo no país. Conosco, dois figuraças: Pepe e Beto, também conhecidos como Latinsizer e Fussible, ambos do coletivo Nortec, uma das experiências mais interessantes em termos de visual e fusão eletroacústica. Eles vem de Tijuana e estão com disco recém lançado, o Tijuana Sessions, Volume 3. Muito melhor que o anterior (o volume 1, porque nunca houve um volume 2), os caras capricharam no uso de instrumentos nortenhos desorientando os ortodoxos da eletrônica. Pepe me contou que no lançamento do álbum reuniram 24 músicos no palco mais samples, laptops, teclados e uma infinidade de filtros.

Na roubada também estavam os chilenos, residentes em Berlim, do Mambotour, cujo cantor, Argenis Brito, é também voz do alemão gaiato, Senor Coconut. Recomendo "atina.latino".

Otros sonidos muy buenos: mais uma compilação de Reggaeton, por El Chombo, o DJ Marboro de lá. Reggaeton é uma mistura de hip-hop com reggae e elementos latinos, cantados ao estilo ragga. Música sem frescura, direta para a pista. Na linha "eletrônica pura", Digi + Gabo fazem uma house cool e eficiente enquanto o juevencito Cometa se arrisca a revisar clássicos da música mexicana em remixes muitas vezes certeiros em "Mexicanismo Lounge". Pra quem gosta de banda, recomendo El Gran Silêncio e qualquer coisa do meu selo mexicano favorito, Nuevos Ricos. Tem Silvério com suas performances alucinadas (o cara tira a roupa, dá mosh ...), Lasser Moderna, Maria Daniela e os famosos Titans, entre a eletrônica, o pop e o rock.

Me gustan los narcocorridos, versão bandida para o tradicional corrido. As letras falam basicamente sobre tráfico, contrabando, elogios a vida bandida e crônicas onde a polícia nunca se dá bem. Seria mais ou menos como Chitãozinho e Chororó cantando letras feitas pelos caras de baile funk.
Fuleiro e engraçado!!

OMB

Recebi algumas ressalvas do leitor Bruno sobre a coluna da semana passada. Ele acha que é necessário ter um órgão regulador para que os músicos tenha um mínimo de cachê. Não concordo e lembro-me que, entre outros motivos, a Soparia fechou por causa das seguidas multas da OMB. Roger generosamente abriu suas portas para bandas amadoras que, mais que dinheiro, precisavam formar público.
Mecanismos protecionistas na área da cultura tem como conseqüência inevitável inibir o novo.

Vamos fazer lista?

OK, não vou ser original e proponho aos leitores uma lista. Vamos lá? A idéia é simples: vamos escolher os mais bacanas e os mais sebosos do ano. Pode ser disco, livro, personalidades, eventos ... O que vocês quiserem! Envie cinco nomes pra dj.dolores@gmail.com
Divulgo a lista final, com comentários, lá pela metade de janeiro.

sexta-feira, dezembro 16, 2005

A volta dos mortos vivos

É noite na cidade do Recife e o terror está instaurado. De um passado sombrio de trevas e medo, ressurge o monstro que pensávamos estar morto. Músicos recifenses, tremei-vos !!! E a única proteção possível são carteirinhas plastificadas, emitidas no sórdido covil da criatura. Mais caduco que a velha debaixo da cama, mais feio que o bicho-papão, o ser estende suas garras carregadas de papéis ensebados nas caras dos pobres músicos que tentam trabalhar na cidade. Da escuridão do Edifício Inalmar para os spots dos palcos, está de volta a OMB, sigla nefasta que significa Ordem dos Músicos do Brasil que, depois de um bom tempo sob uma liminar que nos alforriava de seus grilhões, volta com carga total.

Longe de proteger os profissionais da música, a tal da Ordem implanta terror e achaques sob a categoria. Seus poderes são federais, com direito a cobertura policial, se necessário, embora o desacerto de sua lógica seja tão grande quanto sua força.

A OMB tem o direito de estabelecer quem é músico e quem não é. E o pior: pode proibir o trabalho honesto de quem ganha a vida com a música, o que é absolutamente inadmissível porque música ruim não mata ninguém, não fere e, no máximo, esvazia o salão. Quem tem que julgar o músico é a platéia e não burocratas da cultura.

Seu caráter protecionista é muitas vezes eticamente duvidoso, seu gatilho do retrocesso tem raízes ditatoriais e sua desconexão com o mundo atual é gritante.

O teste de admissão é superficial e humilhante mas pode ser comprado. É só pagar (uns trocados são sempre bem vindos) por uma carteira provisória. Enfim, um claro caso de inutilidade pública.

Uns

O Coquetel Molotov lança hoje mais um número de sua revista homônima em clima de festa na rua do lima.

O design, a impressão superam a edição anterior que já era excelente mas, editorialmente, sua principal virtude é também o que seria o maior defeito: toda a revista é focada num público muito específico. A pauta se restringe em detalhes que não interessam a maior parte das pessoas e algumas entrevistas dão uma corda grande pra egotrip dos entrevistados, caso da matéria com Catatau.

No número anterior essa qualidade (ou defeito) era mais evidente. Dessa vez há uma leve tentativa de ampliar público, o que acho saudável. Fico na torcida por uma revista que tem possibilidade de se tornar referência nacional.

E outros

Em tempos de internet, blogs, fotologs não se fazem mais fanzines como antigamente. Bom, esse velho punk se surpreendeu com zine aperiódico “Dessalve”. Xerocado, tosco e repleto de energia rebelde, é a típica publicação perdida no tempo. Fiquei comovido. Peguei meu exemplar na Elemental, aquela loja de quadrinhos que tem no cruzamento da Riachuelo com a Aurora.

sexta-feira, dezembro 09, 2005

Tecnologia, generosidade e groove.

O que mais atraiu os pioneiros da eletrônica em gêneros como house, tecno ou D&B foi o baixo orçamento. Quase nada se comparado ao custo de gravar uma banda inteira. Em sua essência a eletrônica seria uma continuação do espírito Do It Yourself (faça você mesmo) dos punks pois baixo custo significa falta de compromisso com vendagens altas e, consequentemente, mais liberdade de experimentação.

No Brasil, a eletrônica veio de cima pra baixo, trazida por jovens de classe média deslumbrados após uma temporada européia. De modo geral o cenário desenhado no país foi traçado pelo mix de muito dinheiro e nenhum compromisso. Lugares incensados como o Hell’s em São Paulo eram de fato ... um inferno de deslumbramento jeca movido a drogas de má qualidade. Depois de tanta fritura não sobrou um track memorável pra contar história.

Em março do ano que vem, seguindo caminho inverso, Arcoverde servirá de base em Pernambuco para um dos mais interessantes projetos na área de inclusão digital entre jovens economicamente carentes. Trata-se do Eletrocooperativa, já testado em Salvador com sucesso absoluto. Liderado pelo produtor Gilberto Monte, o núcleo baiano produziu seis CDs entre Hip-Hop e curiosos experimentos eletro-acústicos além de um PF de primeira para DJs: CD com loops de percussão inteiramente gratuitos para quem quiser samplear e construir sua própria faixa. Tecnologia, generosidade e groove.

Jovens durangos brasileiros tem três possibilidades de ascensão social: futebol, crime ou música. A que mais me agrada é a última. O pessoal da Eletrocooperativa fez o trabalho completo e além de treinamento e aparelhagem ainda organizou um núcleo de vendas para os CDs lá produzidos. Custam 5 reais cada, e são vendidos em tabuleiros nas ruas de Salvador, competindo no gosto e no preço com os camelôs.

Destaque para o trabalho super particular do DJ Mario, gravado em casa, ao vivo, com dois turntables, um rádio sintonizado e um sampler basicão.

Quem canta

Pesquisa da semana passada revela: leitores dessa coluna cantam jazz e sambas quando dá um aperto no coração. A mais recifense de todas as leitoras, Liliana, desfia clássicos do cancioneiro pernambucano num catamarã. Vejam que luxo: embaixo do sol, sobre as águas do Capibaribe e ainda mais cantando “Recife, cidade lendária”.

Super obrigado para Indira que, não só abriu seu repertório como ainda me enviou MP3 de sua faixa favorita: “Mas quem disse que eu te esqueço”, com Dona Ivone Lara.

quinta-feira, dezembro 01, 2005

Cantei, cantei ...

Descobri o amor e John Coltrane ao mesmo tempo. Numa época em que não havia CDs ganhei um vinil de capa azulada que ouvi exaustivamente não só naquele dia mas durante os anos seguintes e ainda hoje me acompanha, mesmo que aqueles olhos castanhos já não estejam tão perto.

Música é seu único amigo até o fim”, dizia uma velha canção dos Dorrs ...

No excelente documentário Ônibus 174 que narra aquele aterrorizante episódio do seqüestro de um ônibus por um ex-menino de rua, uma das vítimas conta que ele, cercado pela polícia, acuado por câmeras, cantava “canções demoníacas”. Seu último consolo, suas últimas palavras. Cantar é provar pra si próprio que ainda existe vida, que há o querer e a vontade de se expressar.

Berramos um tema antigo no banheiro, choramos amores perdidos em canções de gosto duvidoso (amor com senso de ridículo não é amor), assobiamos nas ruas e cantamos desafinado para quem amamos, pois não há maior prova de um genuíno sentimento que perder a vergonha e, em troca, ser saudado com a emoção do seu par. Canta-se na guerra. Sim, os soldados cantam juntos para suportar e ritmar os exercícios físicos enquanto na cidade sitiada canta-se e bebe-se para não pensar sobre aquele que pode ser o primeiro dia do resto de suas vidas.

Ainda sei cantar as singelas melodias que minha mãe sussurrava no meu ouvido de bebê e quando ouvi a “Eguinha Pocotó” pela primeira vez achei que o MC Serginho tinha feito uma canção de ninar muito melhor que Boi-da-cara-prêta que me metia medo naquelas noites à beira do São Francisco.

Dizem que certa vez o compositor John Cage se submeteu a uma experiência numa câmera de absoluto silêncio e ainda assim ele ouviu um som ritmado e grave que mais tarde foi detectado como o ruído do sangue circulando em seu corpo pois o fluxo da vida não é silencioso e tem beat.

Mas há uma forma de silêncio maior: a falta de algo que nem sempre sabemos o que é. Nesse caso, ouvimos uma bela e triste canção no vazio das idéias, dessas que só a gente ouve para preencher um buraco tão profundo.

Qual é a sua?

E você, que lê essa coluna? O que você gosta de cantar?

(Eu confesso que tenho cantado um hit velho dos Strokes, sem contar com aquela de Marcio Greick que diz “eu já não consigo mais viver dentro de mim”)

Mande email pra mim e vamos descobrir qual a nossa música favorita, dessas que a gente canta pra mandar a tristeza embora.

Escreva para dj.dolores@gmail.com

Tristeza não tem fim

Hoje, esse rapaz está só melancólia. Se posso sugeri uma trilha sonora pra acompanhar a leitura, recomendo Cat Power que é meio pra baixo até quando está alegre. Free, do seu último disco, You are free, é minha recomendação. Diple fechou seu set no Rio com essa faixa. Deixou tocar inteira!! O bonde dos sorumbáticos segue com Smog, ex da moça e da fossa como ela. Beleza e desilusão.

DJ/Rupture

OK, o cara é tão gente boa, tão gentil que nem precisava ser um bom DJ. Mas ele é! Rupture AKA Jace Clayton, meu parceiro de Vegas e BH, fez um disco excelente chamado Special Gunpowder. O danado é importado da Europa então deve sair meio caro pra comprar. Procure na web. Ele é simpatizante do compartilhamento de música e não vai se importar. Dá pra baixar também vários DJs set mas bacana mesmo é ouvir seu trabalho autoral que tem reggae, ragga, experimentalismo eletrônico e, delícia das delícias, músicas em espanhol pois o cara, apesar de americano, mora na Espanha.