segunda-feira, maio 29, 2006

Ah, esses moços ...

Foi no Rio de Janeiro que passei a primeira noite nessa mais recente volta ao Brasil. Noite inquieta sob as sombras do Arcos da Lapa, onde música, sexo barato e paraísos artificiais ditam a regra da farra. Uma confusão do outro lado da rua me acorda na madrugada e, debruçado na janela, acompanho o filme envolvendo um senhor de cabelos brancos, uma moça excessivamente maquiada e uma dupla de policiais. “Não comeu? – pergunta o cana – “Então pague!” e logo ouve-se um sonoro tapa, desses dados com a mão aberta. Pagou, é claro. Ninguém resiste a um bom argumento aliado a uma demonstração de força.

A Lapa sempre foi assim: pura boêmia que se adapta com o tempo e uma nova geração disputa espaço entre travestis, pinguços e damas da noite: B-boys e rappers apresentam suas batidas enquanto no Semente – simpática casa de samba - alguma revelação desabrocha; folcloristas revivem o Jongo da Serrinha enquanto roqueiros balançam suas cabeças ao som de hardcore, tudo na santa paz ou até onde isso é possível.

Apesar da aparente diversidade uma palavra é consenso nas cabeçinhas desses moleques: raiz. Tudo tem que ser de raiz! Reggae bom tem que ser de raiz, o samba, idem, também o rock e até mesmo os DJs. O que é um DJ de raiz? Deve ser aquele que usa vinis, mesmo que isso reduza seu set a coisas que só foram lançadas nesse formato que não é barato e nem fácil de achar.

Enquanto a cerveja vai enchendo o copo, enquanto a língua molha a seda do cigarro, um Caboclo Ariano – o Caboclo Africano é gente fina - baixa nos moleques e tome conversa em busca do que é ou não puro...de raiz. Houve mesmo o caso de um mestre de jongo duramente criticado por inserir uma harpa no seu brincante. O mestre é do povão mas os puristas, obviamente, são universitários de classe média que, sem perceber, tornam-se gatilhos do reacionarismo cultural mais rasteiro.

Gosto de dizer que Dona Lia de Itamaracá merecia ser Madona, no seguinte sentido: ela merecia ter videoclipes bacanas, tocar na rádio e na MTV, fazer tournês internacionais por que ela é uma das mais interessantes cantoras que conheço, uma artista carismática e inteligente. Já dividi o palco com Mestre Salustiano mais de uma vez. Eu e minhas máquinas. Ele e sua rabeca. Funcionou divinamente pelo fato de que antes de ser eleito como um símbolo ele é músico e suas aspirações são, portanto, musicais e não sociológicas.

Como dizia Walter Franco nos loucos anos 70: “Quem tem raiz é planta”.

Som de preto 1

Houve uma época em que o hip-hop não era feito por moleques com pose e caras de malvado e apenas – apenas? -servia de suporte para louvar a positividade da cultura vinda dos guetos, uma louvação à auto estima, esperançosa por tempos mais justos porém sem a amargura dos rappers atuais.

Esse tempo bom está registrado na compilação “Big Apple Rappin’ – The Early Days of Hip-Hop Culture in New York City”, lançamento imperdível do selo Soul Jazz Records.

Som de Preto 2

Do hip-hop para o Acid house foi um passo! E o Soul Jazz segue desvendando a era primitiva da dance contemporânea numa outra compilação básica: Acid, com os pioneiros – negros em geral – que aceleraram a batida do hip-hop até um formato muito familiar aos ouvidos dos clubbers de hoje em dia.

Na bolacha, nomes como Sleezy D (um dos codinomes do lendário Marshall Jéferson), Lil’l Louis, Armando e Green Velvet.

Som de cinema

Vem de um dos componentes do grupo Troublemakers, East, uma trilha sonora bem interessante mesmo que fora do mundo das imagens: “13 Tzameti”.

Embora predomine temas ambient, há momentos de flerte com o trip-hop e abstrações sonoras com diálogos que por si já são visuais. Ah, se certas percussões lhe soarem familiar fique sabendo que a culpa não é daquele cigarro que você fumou antes de ouvir o disco. A culpa é de nosso Mr. Jam, meu ex-companheiro de Santa Massa, hipnotizando os franceses com sua sabedoria percussiva.

domingo, maio 21, 2006

Um encontro com Mia Couto

Um dos lugares mais interessante do mundo para testar o tamanho da resistência dos nossos estômagos é Portugal. A comida, proporcionalmente deliciosa ao seus efeitos nefastos, é baseada em sangue, tripas, orelhas e partes menos nobres dos animais. Ha algo de medieval na culinária popular portuguesa, lembrança de eras de extrema dificuldade, compensado agora por uma incrível fartura. Come-se e bebe-se bem nesta terra. Mas é preciso muita saúde!

Entre um gole de vinho do porto e uma ginja, entre uma bagaceira – aguardente feita com o bagaço da uva – e uma alheira - lingüiça de pão inventada pelos judeus – sentia-me um Dom João decadente e empanturrado - mesmo com uma mala cheia de livros, DVDs e discos – faltava-me outra fonte de alimento, uma luz, um brilho especial para aqueles três longos dias parados depois de um show na Casa da Musica. Uma rápida olhada no jornal e acho algo para exercitar o espírito: o escritor moçambicano Mia Couto estaria presente na Universidade do Porto para uma palestra. Fa que sou de suas tortuosas narrativas, de sua escrita poética privilegiada, não poderia perder essa.

Meu escritor africano favorito acaba de lançar mais um livro, “O Outro Pé da Sereia” e mais uma vez seus personagens atormentados se vêem em viagens numa frustrante busca da identidade. E é sobre esse tema que ele inicia sua palestra. “ não existe uma identidade, somos varias identidades em um so corpo”, sentencia, pra completar “ a busca em si representa o achado, a viagem é o fim e não um meio de chegarmos a uma resposta pragmatica”.

Ele mesmo, um caso curioso: branco e sem raízes além do fato de ter nascido e crescido numa grande metrópole africana – Maputo, capital de Moçambique – tem confundido críticos desatentos que esperavam um negro originário de alguma tribo “pura”. “A nossa essência é feita de contradição”, diz ele enquanto este colunista, deliciado, toma para si tal afirmação.

Monoculturais

A coluna passada gerou um bombardeio de emails na minha caixa postal. Talvez por conter um comentário critico ao intocável Ariano Suassuna, o ultimo bastiao de uma suposta pureza elitista e conservadora, símbolo vivo do que ha de pior no passado – e no presente - do estado de Pernambuco. Esse tipo de construção da identidade nordestina ainda esperneia - e fácil ser conservador! – alimentado por intelectuais incautos, em busca de tabuas de pensamento unânimes.

Enquanto os Mias, os Guimaraes, ou mesmo os Joyces vêem na língua uma grande obra coletiva que se recria, sem donos, sem certos ou errados, de natureza mutante, culturalmente permissiva feito quenga bondosa que oferece suas tetas para qualquer falante, temos do outro lado os latifundiários culturais que gostariam de mandar no saber coletivo como se este lhe pertencesse, nostálgicos da monocultura, acham que o mundo e uma enorme plantação de cana cercado por cabras de olhares mortos pastando entediadas.

Em que prateleira?

Inclassificável – o que é um elogio –, underground e muito interessante é o disco do inglês Capitol K, “Nomad Junk”. Seu nome de batismo é Kristian Craig e ele é responsável pela parte eletrônica da banda que acompanha minha colega de selo europeu, Cibelle.

Sua técnica – ele usa ditafones em alguns momentos – remete ao trabalho do experimentador profissional Holger Czukay, ex-Can. Produto da era do laptop, cada faixa tem inúmeras referencias, muita sujeira, pouca linearidade e me deixou desnorteado.

Será que da pra baixar da rede?

Tango

Quem esta lançando novo disco é o trio franco-argentino Gotan Project.

Mais cool e fortemente acústico, o disco parece afirmar o amadurecimento do conceito de tangos e milongas contemporâneos.

Como no anterior, uma versão para um tema de cinema. Se antes era para a faixa de abertura de “O ultimo tango em Paris”, dessa vez eles fizeram uma menos obvia e tristissima releitura de “Paris, Texas”, de Ry Cooder.

quinta-feira, maio 11, 2006

Técnica X Intuição

O mundo é injusto!

Tomemos duas amostras casuais, o músico R e o músico L. O primeiro demonstrou queda para a música desde pequenininho, matriculou-se no conservatório, dedicou-se arduamente a estudar escalas – desenrola as pentatônicas como se assobiasse - técnicas de dedilhado, acordes difíceis e ritmos em divisões de tempos complexos. Seus dedos estão calejados pelas cordas, sua boca ferida pelo bocal, as costas reclamam do peso do instrumento.

Depois de tanto tempo investindo em seus estudos, o Sr. R se vê trabalhando em ambientes de pretensões jazzísticas, mas maculados por goles de cerveja, risadas jocosas e caôs amorosos. No fim da noite, o Sr. R está arrasado, ressentido com a raça humana – essa cambada de ignorantes! – pois ninguém respeita seu trabalho, sua técnica sofisticada, sua filosofia berkeeniana ... seu virtuosismo!!!

Por outro lado, o SR. L chegou até a música por causa da maloqueiragem. Entre uma cerveja, um baseado e a roda de amigos, aprendeu a tocar um instrumento. Desenvolveu sua técnica de modo intuitivo, montou acordes copiando cifras de revistas, não sabe ler nem escrever partituras e – pasmem! – pendura a guitarra de modo desleixado, lá embaixo da cintura.

Mas o Sr. L tem qualidades: sua música simples seduz o público, tem noção de tempo e sabe como timbrar seu instrumento conferindo-lhe personalidade. Seus erros – erros sob o ponto de vista da escola do Sr. R – são inovadores por subverterem uma linguagem conservadora. O resultado veio em shows e carinho do público – gentalha, diria o círculo de amigos do Sr. R – que imita seu estilo de pegar a guitarra em inspiradas air guitars.

Com todo seu saber intuitivo o Sr. L virou referência não só no país, mas também fora e deve ser lembrado durante muito tempo como alguém dono de um estilo próprio.

Para o Sr. R, resta o consolo de seus pares injustiçados que, entocados nos porões do virtuosismo, se exibem uns para os outros.

Não, o mundo não é injusto. A gente é que sabe escolher o que a gente gosta.

A escola

A Escola de Berkelee virou paradigma de virtuosismo musical. Para alguns, é claro. De lá saíram os músicos mais chatos do planeta, emoções esmagadas pela técnica pura, pela afetação exibicionista, uma presunção elitista baseada em enquadrar a música popular na escrita acadêmica.

Sua corrente de pensamento acredita na música como algum tipo de esporte que pode ser medido com exatidão numérica, como se a quantidade de notas num solo ou o número de acordes – sempre bastante complexos – determinasse uma progressão musical.

Os caras fizeram o impossível: pegaram o jazz e o blues e encaretaram ao suprimirem o que tem de melhor nesses estilos: a espontaneidade generosa dos seus intérpretes.

E agora eles tem uma cadeira para DJs. Encaixotaram o scratch!!!

Alguém aí lembra dos nossos armoriais?

A Casta

Existe sempre alguém tentando nos convencer que alguns são absolutamente melhores que os outros. O velho embate do gosto é o esporte favorito das elites para nos convencer que seu dinheiro gerou cultura de qualidade.

Puro engodo retórico!

O sistemas de castas culturais cansa a minha paciência e me faz ter essa horrível sensação de perda de tempo. Lembro-me, por exemplo, de uma palestra onde o venerável Ariano Suassuna ardia em chamas irritado com a presença da guitarra – esse objeto alienígena – na pureza da nossa música brasileira.

Fred Zeroquatro, então um jovem punk, lembrou que o piano – tão usado na construção armorial - era um instrumento europeu.

E o velho mestre corou e engasgou diante da platéia do Centro de Artes.

Seria apenas cômico se tantos não o levassem a sério.

quinta-feira, maio 04, 2006

O legado do suicida

Troquei o aprazível bairro de Casa Forte, perto do silêncio gilbertiniano de Apipucos, pelas margens do Capibaribe, em Santo Amaro, de onde nunca deveria ter saído. Mudanças são sempre terríveis! Mudar de rotina, desarrumar gavetas, mexer em compartimentos sentimentais que estavam quietinhos num canto, descobrir novos caminhos entre a cama e o banheiro são experiências enervantes.

Mas o pior é ter que arrumar a coleção de discos de vinil!

Como cataloga-los? Por estilos? E deixar um Elvis Costelo ao lado do The Dark Side of The Moon, do Pink Frog? Como catalogar “L’ascultation Cardiaque”, uma bolacha grossa que registra diversos batimentos cardíacos diferentes? E os white labels do seminal Congo Natty? Ficam em eletrônica – por causa do lado jungle – ou vão para junto dos 45 RPM de ragga jamaicanos?

Minha única certeza é a respeito dos discos da Nação Zumbi e o único do Mundo Livre que saiu em vinil. Esses estão juntinhos.

Caramba!!! Pelos pentelhos retocados da Gal Costa (na capa de “Índia”)!!! Descubro que tenho uma vasta coleção de MPB que inclui Guilherme Arantes, Jessé e até mesmo o hipongo seboso, Ednardo. Como isso veio parar em minhas mãos? Estaria este DJ sob os efeitos de um alucinógeno poderoso quando comprou esses discos?

Hum.... Pensando bem, me lembro da origem deles.

Eu estava tocando numa festa privada, apenas para amigos, aí chegou um cara e disse que tinha uma coleção de vinis de MPB, queria desfazer-se daquilo mas não de qualquer modo. Apenas deixaria com quem tivesse cuidado, que amasse as queridas bolachas negras. Demonstrei interesse e combinamos de nos encontrarmos.

Perdi seu número, o tempo passou e já havia esquecido da criatura quando, num belo dia, sem aviso nenhum, ele me liga: Oi, é fulano, aquele da festa, você ainda quer os vinis?Então, ligo de novo quando você estiver por aqui. Concordei. Respondi que sim mas que estava viajando.

Durante os dias seguintes ele me ligou insistentemente mas calhava sempre de eu estar fora, trabalhando. Da última vez ele carregava os discos no carro e se ofereceu para deixa-los em algum lugar. Sugeri o escritório de um amigo em comum.

Dias depois voltei e fui pegar os vinis. Eram mais de cem discos de MPB. Algumas pérolas incríveis e algumas bobagens. Quando eu levava a última caixa para o carro, meu amigo comentou: O mais estranho é que dois dias depois de deixar os discos aqui ele se suicidou.

Minhas pernas tremeram e me vi, eternamente, guardião do legado do suicida.

A dúvida

E se eu não tivesse aceito os tais discos, teria prorrogado sua vida por mais dias? Será que ele mudaria de idéia?

O Manual

Li Suicídio, modo de usar, de Claude Guillon e Yves Le Bonnice ainda na adolescência, escondido dos olhos vigilantes de minha mãe – tive que compra-lo mais de uma vez pois ela jogava os exemplares no lixo quando os achava. O livro é um libelo individualista que prega o direito de optarmos pela vida ou pela morte e situa histórica e filosoficamente a prática do auto-extermínio.

O capítulo dez, cheio de dicas, foi banido em vários países mas não no Brasil onde saiu pela obscura EMW Editores e está fora de catálogo.

Para ler sem rancor do mundo e saborear a lógica extremista dos autores.

Lado B

O Hotel Astória a um clássico português. Da janela posso vislumbrar a parte antiga de Coimbra, seus becos e historias de um passado secular como o resto do pais. O olhar não é sereno pois tenho uma coluna para escrever e muito pouco tempo para fazê-lo.

Estou na Europa para apenas três shows e, ainda desnorteado - mudança de fuso, horas dentro de aviões, troca de aeroportos, caras novas e agenda cheia –, resolvo compartilhar com os leitores o outro lado dessa vida de DJ viajante.

Saímos – eu, cinco musicos, técnicos e produtor - na segunda-feira a noite do aeroporto do Guararapes, num vôo da TAP direto para Lisboa. Deveríamos ir direto para Londres mas um compromisso surgido de ultima hora – convite para abrir o festival de cinema brasileiro na França – nos colocou numa cilada de transporte e a coisa ficou assim: Recife – Lisboa – Londres (Heathrow) – um táxi ate Lotum, do outro lado da cidade, de onde sairia o vôo para Paris e, finalmente o Charles DeGaulle.

Chegamos depois de quase quatorze horas de vôo mas mesmo estropiado procuro um lugar bacana para jantar e acho um boteco iugoslavo, bem na esquina, tocando fanfarras e cheio de imigrantes falando alto, fumando e bebendo. Estou em casa!

Apesar do cansaço o sono não chega fácil e a madrugada é longa. No dia seguinte, já tem compromisso com imprensa e show. Lavo o rosto, engulo um drinque forte e encaro a vida. A vida, assim chamada nesse momento, é o show de abertura do Festival de Cinema Brasileiro na França. O local demora a encher na expectativa do publico que foi conferir “A Máquina”. Começamos a tocar pouco depois da meia-noite para um publico animadíssimo mesmo para uma quarta-feira européia. Chegamos no hotel as três e logo mais, as sete eu já estou de pé para encarar mais um vôo ate Lisboa.

Um problema ocorre com o ticket e antes de ir para o aeroporto tenho que passar no DHL. Stress absoluto! O tempo corre enquanto o trafico parisiense sussurra que vou perder esse avião.

No fim tudo corre bem e depois de mais duas horas de carro chego a Coimbra.

Daqui a pouco tem mais uma passagem de som e amanha bem cedinho encaro Londres onde reencontrarei a banda que foi direto de Paris para lá.

Vida de glamour? Garotas e Champagne? Festas privês?

Nada disso!

Se você acha que através da musica você vai achar facilidades, meu amigo, vá trabalhar num banco ou ser médico.