quinta-feira, maio 04, 2006

O legado do suicida

Troquei o aprazível bairro de Casa Forte, perto do silêncio gilbertiniano de Apipucos, pelas margens do Capibaribe, em Santo Amaro, de onde nunca deveria ter saído. Mudanças são sempre terríveis! Mudar de rotina, desarrumar gavetas, mexer em compartimentos sentimentais que estavam quietinhos num canto, descobrir novos caminhos entre a cama e o banheiro são experiências enervantes.

Mas o pior é ter que arrumar a coleção de discos de vinil!

Como cataloga-los? Por estilos? E deixar um Elvis Costelo ao lado do The Dark Side of The Moon, do Pink Frog? Como catalogar “L’ascultation Cardiaque”, uma bolacha grossa que registra diversos batimentos cardíacos diferentes? E os white labels do seminal Congo Natty? Ficam em eletrônica – por causa do lado jungle – ou vão para junto dos 45 RPM de ragga jamaicanos?

Minha única certeza é a respeito dos discos da Nação Zumbi e o único do Mundo Livre que saiu em vinil. Esses estão juntinhos.

Caramba!!! Pelos pentelhos retocados da Gal Costa (na capa de “Índia”)!!! Descubro que tenho uma vasta coleção de MPB que inclui Guilherme Arantes, Jessé e até mesmo o hipongo seboso, Ednardo. Como isso veio parar em minhas mãos? Estaria este DJ sob os efeitos de um alucinógeno poderoso quando comprou esses discos?

Hum.... Pensando bem, me lembro da origem deles.

Eu estava tocando numa festa privada, apenas para amigos, aí chegou um cara e disse que tinha uma coleção de vinis de MPB, queria desfazer-se daquilo mas não de qualquer modo. Apenas deixaria com quem tivesse cuidado, que amasse as queridas bolachas negras. Demonstrei interesse e combinamos de nos encontrarmos.

Perdi seu número, o tempo passou e já havia esquecido da criatura quando, num belo dia, sem aviso nenhum, ele me liga: Oi, é fulano, aquele da festa, você ainda quer os vinis?Então, ligo de novo quando você estiver por aqui. Concordei. Respondi que sim mas que estava viajando.

Durante os dias seguintes ele me ligou insistentemente mas calhava sempre de eu estar fora, trabalhando. Da última vez ele carregava os discos no carro e se ofereceu para deixa-los em algum lugar. Sugeri o escritório de um amigo em comum.

Dias depois voltei e fui pegar os vinis. Eram mais de cem discos de MPB. Algumas pérolas incríveis e algumas bobagens. Quando eu levava a última caixa para o carro, meu amigo comentou: O mais estranho é que dois dias depois de deixar os discos aqui ele se suicidou.

Minhas pernas tremeram e me vi, eternamente, guardião do legado do suicida.

A dúvida

E se eu não tivesse aceito os tais discos, teria prorrogado sua vida por mais dias? Será que ele mudaria de idéia?

O Manual

Li Suicídio, modo de usar, de Claude Guillon e Yves Le Bonnice ainda na adolescência, escondido dos olhos vigilantes de minha mãe – tive que compra-lo mais de uma vez pois ela jogava os exemplares no lixo quando os achava. O livro é um libelo individualista que prega o direito de optarmos pela vida ou pela morte e situa histórica e filosoficamente a prática do auto-extermínio.

O capítulo dez, cheio de dicas, foi banido em vários países mas não no Brasil onde saiu pela obscura EMW Editores e está fora de catálogo.

Para ler sem rancor do mundo e saborear a lógica extremista dos autores.