quinta-feira, abril 20, 2006

Música espiritual

Francis Wells é cirurgião, enquanto Marcus Woxneryd é artista plástico. Juntos, eles planejam fazer um mapeamento sonoro do corpo humano. Com o auxílio de equipamentos de ponta vão samplear e, posteriormente, editar os sons que o corpo humano gera, muitos deles familiares aos médicos.

O resultado será exposto numa instalação de caráter mais artístico que científico – se é que é possível desassociar duas formas igualmente genuínas de interpretar a vida – em Londres até setembro deste ano de 2006.

Os sons emitidos por nossos corpos representam a música da vida enquanto grunhidos e cânticos primais estão na essência do que chamamos civilização. Foi em torno da música que conceitos básicos de civilização como a linguagem, por exemplo, se desenvolveram. As primeiras gramáticas – orientais e não norte-americanas como pode supor Bush Jr. e seus asseclas – tinham a música como suporte, pois o objeto de estudo era a palavra cantada, suporte da língua considerada sagrada, o sânscrito, o jeito certo de falar com os deuses. Só para se ter uma noção estamos falando de uma era pré-cristã.

Os cânticos em brâmane eram minuciosamente decorados a ponto de se distanciarem da vida cotidiana e se tornarem específicos para poucos iluminados.

Esse colunista agnóstico, despido de qualquer fé no místico sabe separar o espiritual do religioso e é capaz de enxergar o paraíso em vida nas ladainhas dos cantadores, nas teclas do Duke ou em texturas sintetizadas de Carl Craig.

Música é sagrada! Não é possível toca-la mas é possível senti-la – agora penso na massagem de graves poderosos mexendo em cada milímetro dos nossos corpos – e, mesmo abstrata, toca naquele ponto crucial que gera as emoções vindas de um passado além da memória consciente feito criatura onisciente, onipresente, atravessando o tempo e espaço, uma voz infinita nos chamando para um mundo além das nossas vidas ordinárias.

Espírito cantante

O paquistanês Nusrat Fateh Ali Khan, cantou temas de amor e religiosidade sufi durante sua estada no planeta. Em dezenas de discos gravados, o chamada Rei do Quawwali, levou a música praticada em sua religião para o resto do mundo, quebrando barreiras de casta, credos e linguagem. A maior parte dos discos, gravados ao vivo, contém canções que – curtinhas – não tem menos de 14 minutos de puro transe.

Para você, não-iniciado, recomendo a versão modernosa do mestre – não menos boa – Must must, lançado pelo selo Real World. Tem até dois belíssimos remixes assinados pelo Massive Attack.

Espírito remixante

Quer participar e um concurso internacional e ter seu remixe divulgado por um selo respeitável? É isso que a Cramed Discs está propondo numa parceria com o site Creative Commons.

Para participar, vá até http://ccmixter.org/crammed, baixe vocais, instrumentais ou loops de artistas como Cibelle, Apollo Nove ou desde DJ Dolores e mexa à vontade no nosso pirão. Tempere do seu jeito, mude o tempo e acrescente coisas. Depois mostre pra gente que a gente se encarrega de mostrar pro mundo.

Tudo no bom espírito de compartilhar música.

sexta-feira, abril 14, 2006

Invenções

A gente se inventa o tempo todo.

A gente se inventa gordo, baixo e feio. Ou belo, sarado e gostoso.

A gente pensa que é inteligente, bacana e que nossa conversa desagrada somente aos bárbaros. Bárbaros, sim, pois a gente se inventa também como iluministas da raça humana.

O Recife, nosso corpo maior – somos células, pedacinhos que compõem essa cidade – se inventa do mesmo jeito.

O Recife inventa tradições, um passado glorioso - embora baseado na escravidão e na monocultura – de poder e influência política e se inventa nobre e aristocrático mesmo que a verdadeira nobreza – senso comum na contemporaneidade – resida na democracia, na tolerância e diversidade, o contrário do comportamento da elite local.

O Recife inventou que tem a cena musical mais rica e interessante do país e muitos vociferam “do mundo”, em seu mundinho – de Olinda a Candeias – como pastores de uma nova religião.

Se inventa a importância da maior avenida em linha reta, o maior shopping center da América Latina e até mesmo, piada involuntária caruaruense, o maior cuscuz do mundo.

(E cá entre nós: a Caxangá é de uma feiúra de dar dó – ou de doer – e não tem um segundo maior cuscuz para servir de parâmetro para o primeiro)

O foco dessa coluna é música, daí volto ao assunto: temos mesmo a cena mais bacana, mais atuante ou influente do Brasil?

E por que não temos um único clube interessante com bandas nova tocando diariamente? O que acontece com a cena de DJs, imobilizada pela auto complacência de tocar apenas para amigos – estrutura de som, luz e ambientação beirando o zero - ou, por outro lado, baseada apenas em hits fáceis de boites que mal abrem as portas já fecham sem realmente conquistar uma audiência fiel?

Paulistanos inventam que o Recife é uma maravilha enquanto recifenses migram para Sampa em busca de oportunidades. Mudar o lugar ou mudar de lugar? Eis a questão que assombra nós, moradores dessa cidade!

Pergunta: quantas bandas realmente boas, bem sucedidas, ficaram por aqui fomentando seu sucesso do Recife para o mundo? Quantas optaram pela não demagogia bairrista e, a partir daqui, dialogaram com o mercado e, consequentemente, com um público maior que seus vizinhos de bairro? Sim, existem algumas poucas...mas nada que justifique a imagem que a cidade inventou de si própria.

Termino, inconcluso, com a lembrança de uma letra de Zeroquatro – herói local – recontextualizado: é tudo uma grande invenção.

In-Bolada

O que pode fazer um garoto ou uma garota pobre numa cidade como o Recife senão montar um grupo de hip-hop?

Despretensiosa e de baixo orçamento porem eficiente é a compilação Dialeto Sonoro Contemporâneo, do selo In-Bolada Records. Respondendo a questão formulada na coluna de hoje, eles optam por mudar a cidade a partir da periferia. Mais que uma posição geográfica, a periferia é tratada como cultura à parte ou como uma forma de identidade.

A produção é simples mas convence em faixas como Geografia dos subúrbios, do Aps ou As rosas falam sim, remix idealizado pelo DJ 9Ato para o grupo Rosas Urbanas. Minha favorita é Cantarolanado, das Donas, que faz uma interessante ponte entre o rap e a embolada de rua.

Viciante

O Vício Louco, destaque na estréia do populista – além de gordo e mal vestido – Central da Periferia, da Rede Globo, é um dos grupos mais bacanas da cidade. Eles tem um hit contagioso e hilário contendo um sampler do pica-pau, aquele personagem do desenho animado e são espécies de estrelas de uma cena que não freqüenta nossos cadernos culturais.

O Picapau (a grafia no disco é assim) pode ser achado em qualquer camelô. È só pedir. E não é pirataria: é informalidade consentida, pois o dinheiro vem de shows e não de vendas de CD.

B-Boys, B-Girls

Sob o interessante conceito de crew – equipe que reúne MCs, grafiteiros, dançarinos – a U.B.I. Zulu Kingz reúne cerca de vinte b-boys, garotos e garotas, entre pichototinhos e o líder, o veterano Pacheco, da primeira formação do Sistema X.

Articulados com o resto do país, planejam abrigar até o fim do ano o evento de dança aqui no Recife. Por detrás da articulação, Soldier, b-boy das antigas que no dilema já citado optou por mudar de lugar e se mandou para São Paulo mas sem perder a conexão Recife.

Abençoados pelo grande pai Bambaataa – Zulu Kingz é o nome de seu próprio crew -, os meninos dançam e a gente curte.

sexta-feira, abril 07, 2006

Minha Utopia freak

O problema do álcool só acontece quando não há mais uma gota na garrafa e nossas almas secas ainda não foram saciadas. Aí, como alimentar a alegria e a música sem mais uma rodada? Como encontrar aquele amor eterno – enquanto dure a bebedeira, que fique claro – sem a ajuda valiosa de um bom uísque?

Ah, senhoras, nada melhor que um hi-fi para romper tantas tiranias acumuladas em séculos de opressão. E depois subir ao balcão, proclamando-se livre, dona dos seus corpos, almas aladas sob a proteção da sabedoria de antigas feiticeiras. Nessas horas, calem-se os discursos feministas diante da transformação da realidade proposta pelo champagne.

O problema do fumo é recente. Os mais velhos fumavam desde criança e não morriam de câncer! Quando foi que inventaram isso? E os nossos índios, apreciadores do ato de inspirar e expirar a branca fumaça de tudo o que se pudesse queimar enrolado em folhas secas? O que seria do jazz se tivesse que se desenvolver nos insípidos ambientes dos bares americanos da atualidade? Era a fumaça – maldita e amada – que compunha a atmosfera exata, acolhedora, para a chuva de notas se misturarem promiscuamente e, juntas, formarem as harmonias que nos emocionam.

O problema da droga é a má qualidade. Tirem esse tema das mãos da polícia e ponham nas mãos dos médicos. Deixem que especialistas determinem o nível de pureza dos ecstasys, LSDs, Cocaína, MDA ou qualquer outra droga química e que o usuário saiba o que está tomando. Cobrem impostos e parem com essa hipocrisia!

E quem quiser ficar tonto como uma barata depois de uma dose de inseticida, que fique! Deixem os bêbados rolarem na calçada e os fumantes se entupirem de nicotina. Num mundo ideal ninguém seria ditador do corpo e da mente alheia.

Vamos desvincular o tema da moralidade tacanha e ignorante. Vamos exorcizar o glamour que atrai jovens impressionáveis e deixem que a informação e a ajuda circulem livremente, longe das grades e do crime.

Na terra

Em tempo de final de campeonato, advirto aos leitores: esse colunista odeia esportes! Mais que isso: fica perplexo quando vê palhaços que correm, chutam e pulam se transformarem em ídolos. Isso diz muito sobre a personalidade desse país de analfas militantes. O pior é a mitologia que se inventou relacionando esporte com cidadania e bom-caratismo. Gente como Romário, Edmundo e os brutamontes da família Gracie, entre tantos outros – trapaceiros e entupidos de anabolizantes – estão aí para provar o contrário.

No ar

Ninguém agüenta mais o tal astronauta brasileiro. O cara deve ser saudável, não fumante, anti-drogas e deve comer alimentos diets, o que não o livra de ter um ar embasbacado e espírito deslumbrado. Se diz cientista mas levou para o espaço uma experiência ridícula, grãos de feijão no bolinho de algodão pra ver se nasce uma plantinha. As pesquisas aeroespaciais mais importantes da atualidade sairam de sondas não tripuladas e enquanto isso o Brasil – nós, contribuintes - gasta 22 milhões de reais nessa brincadeira.

Tem mais: o cara compõe música – horrivelmente pretensiosa – e a gente é obrigado a ouvir.

Na caixa

Foi lançada a caixa “De Gainsbourg a Gainsbarre”, que reúne onze CDs com a obra desse músico que inspirou a coluna de hoje.

Serge Gainsbourg, para quem não sabe, é o autor de “Je t”aime, moi non plus”, clássico tema erótico com tecladinho de churrascaria à frente e gemidos de Jane Birkin, sua musa e companheira durante vários anos.

Fumante inveterado, alcoólico convicto, construiu um trabalho alinhado à caretíssima música popular francesa ao mesmo tempo em que provocava os valores dos fãs com uma anti moral bastante particular.

domingo, abril 02, 2006

Idéias conspiratórias (para pessoas otimistas)

Existe um trecho em Santo Amaro, na Rua da Aurora, entre a Capitão Lima e a Mário Melo – uma muralha formada por edifícios, arrumados feito altar à civilização – onde ventos transatlânticos trazem aromas africanos para os moradores dos andares mais altos. Lá, num daqueles quartos – à meia luz, como tango clássico – um pirralho ou uma pirralha – só pra não desagradar minha amiga do S.O.S. Corpo – está à frente de um computador. Luz azulada no rosto, dedos clicando o mouse e, na tela, uma idéia em processo de execução.
Quem sabe, um blog? Ou um filme? Um final alternativo para o último livro Harry Poter – talvez melhor que o original? Uma música incrível? Ou um remix ilegal – não autorizado pela gravadora – que vai circular entre amigos, objeto e trilha sonora de ato de desobediência civil.
Não só na Rua da Aurora. Mas também em Casa Amarela, na silenciosa Apipucos do mestre Gilberto Freyre, em Surubim ou em São Raimundo Nonato, no Piauí, em Angola, na Argélia, sob o céu que protege os confins do mundo, o fenômeno se espalha: um monte de gente expressando-se através da música, de texto, de imagens, de games e até mesmo de softwares. Para que isso aconteça, apenas a ajuda humilde de um computador. Pouca grana, pouco compromisso com o lucro e o desprendimento de deixar os outros copiarem gratuitamente sua obra. Retorno mais que justo para quem não paga para recriar a obra alheia.
Dividir informações em texto, áudio, vídeo, programações e tudo mais que for digitalizável, com o resto do mundo em softwares – Soul Seek, Kaazar, Limeware e tantos outros – que estão no limite da ilegalidade faz um enorme bem para a civilização e deveria ter o mesmo apelo que leva alguém a acreditar na solidez que um prédio de 20 andares pode oferecer aos seus moradores ou na engenharia de um avião que vai chegar inteiro ao seu destino.
The times, they are a-changin – hey, Bob Dylan! –, é um genial jogo de palavras que relaciona dor e mudanças, muito bem aplicável a esse momento de transformação: downloads, freewares, troca de arquivos, Creative Commons (http://creativecommons.org) e a informalidade digital dos camelôs representam a mudança, enquanto leis do tempo do ronca e executivos da velha guarda são as dores de um mundo decadente que resiste ao que a gente anseia pro futuro.