quinta-feira, maio 27, 2010

Diario da Dinamarca #9

São sete da manha e o gari varre diligentemente a rua, tirando pontas de cigarro de frestas das pedras na calcada. Um veiculo com grossas escovas giratórias limpa o asfalto, levantando uma poeira leve. Ele vai de um lado ao outro, cruzando com os moradores apressados em cima de suas bicicletas. Em contraste, o gato preto e parrudo que circula na região esta deitado na grama, barriga para cima e, provavelmente – assim gosto de imaginar -, tem um sorriso de gato na cara.

Um pai segura a mochila da filha pequena e abre a porta do seu carro, uma mulher dentro de um vestido que lhe cobre todo o corpo, usando um lenço na cabeça, caminha olhando para o chão, uma moca usando fones de ouvido cantarola em alto e bom som sem se importar com o ridículo.

Mais um dia começa em Copenhagen....

Vou na pequena cozinha e preparo meu café da manha: corto uvas, tiro-lhes o caroço, misturo com iogurte, ponho um pouco de aveia e vou comendo enquanto leio um livro. Na seqüência, café e cigarro.

As vezes faço uma salada, as vezes um sanduíche de queijo... comer eh sempre uma preocupação em viagem. Gosto de me alimentar adequadamente, variar de cardápio, evitar gordura...e, falando nisso, não sei o quanto estou pesando. Minha medida eh uma apertada bermuda que não foi feita para o meu tamanho e que carrego sempre comigo. Se eu consigo vesti-la e respirar normalmente eh porque estou bem, caso contrario, devo ter ganho alguns quilos na região do abdomen.
Não sei se engordei depois de tantas vezes ser obrigado a comer um sanduíche ou um cachorro quente na rua por pressa ou falta de opção.

A comida daqui eh uma das piores das partes do mundo que conheço: come-se frio, sem sal, pouco tempero... come-se peixe frio, cru ou defumado, adocicado, muito pão, batatas e, como eh de se esperar de um pais com baixas temperaturas, gordura em excesso.

Os moradores sentam-se em mesas nos cafés para devorarem imensos sanduíches empapados de um creme branco. Sanduíches que negam o culto ao design local por sua falta de funcionalidade: fatalmente se desmontarão, pedaços soltos desabarão sobre o chão e as roupas do faminto. Ha gente comendo na rua mas são exceções. Diferente das grandes metrópoles como Paris, Londres ou Nova Iorque – lugares onde come-se nos parques, no metro, andando apressadamente pelas calcadas -, as pessoas aqui movem-se lentamente, o que da idéia de quão provinciana eh essa cidade.

Nas grandes cidades eh possível perceber quem eh turista pela velocidade do seu passo. Os moradores estão sempre atrasados, correndo atrás da sobrevivência, lutando contra trens e ônibus que não chegam, pulando de um emprego para o outro. Em Copenhagen nada disso acontece, eh como uma vila muito prospera e super desenvolvida, mas ainda assim, um vila: os moradores se conhecem, cumprimentam-se na rua, estão dentro de círculos que envolvem famílias, colegas de escola, de trabalho, grupos solidamente construídos durante toda uma vida, dai a dificuldade deste viajante em travar amizades e penetrar através das grossas muralhas dos relacionamentos sociais.

Observo alguma moedas pois meus cigarros acabaram e terei que sair pra comprar. A moeda de maior valor eh a de vinte kronos, gordinha, com o perfil da Rainha Margarete estampada em uma das faces. Nas duas que tenho em mãos numa tem na outra face o navio MS Selandia, um marco da navegação nacional e outra, a torre do que parece pertencer ao palácio de Grasten. Segue-se a de dez, um pouco menor, com a sempre presente Rainha de um lado e do outro, uma homenagem a H.C. Andersen, originário de Alborg, mas enterrado no cemitério bem em frente de onde moro. As moedas de dois e cinco kronos tem furos no meio e deve ser esse furo que faz a diferença de peso para o reconhecimento em tantas maquinas de auto-servico que existem por aqui, de cigarros, balas, maquinas de lavar roupa, etc...

Para saber quanto vale um krono, o calculo eh fácil: divida por 30, multiplique por 4 e você terá aproximadamente o valor em euros. Pare por ai porque seria um erro continuar a conversão para reais, se assim for feito, uma dor lancinante tomara conta do seu bolso.

Uma cerveja num bar bacana custa 50 kronos, façam o calculo e entendam o que digo...

Nesta quinta-feira espero meu amigo Marcus chegar da Suíça para uma visita de 4 dias, isso significa excelente companhia para passear, filosofias de boteco, viagens no tempo e alternar niilismo com soluções definitivas para os problemas do ser humano e da civilização que esse bípede metido inventou de inventar.

Nos conhecemos ha mais de vinte anos e o que ha de bom nisso eh que nossas discussões foram se refinando a tal modo que não precisamos de muitas explicações para entendermos mutuamente nossos rodeios, metáforas ou ironias pois sabemos o que o outro esta querendo dizer mal se começa uma sentença. Uma boa conversa eh um jogo intelectual, onde não se pretende ter razão em nada, apenas desenvolve-la, deixa-la fluir, brincar com as palavras e, como no pôquer, blefar com o parceiro, engana-lo para fazer graça, sorrir das besteiras... enfim, uma boa conversação, em volta de uma mesa, com café, cerveja ou conhaque para estimular os presentes, eh uma das melhores formas de exercitar do dolce far niente.

Eu queria estar ao lado da minha estante de livros para poder citar a louca conversação narrada por Cabrera Infante em “Havana para um infante defunto”, toda baseada em trocadilhos improvisados, levando a um resultado de puro non sense, exigindo de seu participantes raciocínio fenomenal e muita habilidade com as palavras. Mas lembro do inicio de outra conversa bastante peculiar, essa descrita por Ralph Steadman em “Freud”. Freud, Jung e mais um colega que não me vem a memória, estão num navio, rumo a nova iorque. Um deles, enjoado, vomita e diz: “Estou passando mal, deve ser algo que comi”. No que o outro completa que “ou foi algo que você pensa que comeu” e o terceiro emenda com “ ou talvez você tenha pensado em comer alguma coisa” e segue-se um longo dialogo especulativo, tipicamente psicanalítico, em que palavra e realidade são indissociáveis.

Uma das piores coisas de estar aqui eh não entender a língua. No inicio me assustava com um “Kyllinge” onipresente nos restaurantes. Seria o atendente um assassino convicto? Não, trata-se de frango, galinha, algo inofensivo e, se bem preparado, saboroso. Nada que mate. Já “tak for det” (pronuncia-se “ta que fode”) não eh nenhuma grosseria, ao contrario, eh “muito obrigado por isso”. Ouvindo não da pra perceber mas quando se escreve eh notável a semelhança com o “thank you for that”, do inglês.

Nos festivais eh comum ver varias vans amarelas, meio que caindo aos pedaços. Nas laterais esta escrito “leg et lig”, ou seja, “alugue um cadáver”. Trata-se de uma companhia especializada em locar vans que, de tão velhas, não vão ter sua licença renovada, portanto o preço eh bem baixo e seus clientes, bandas iniciantes, com pouca grana.

Devo encontrar Marcus na Estação Central, onde já fui muitas vezes mas sempre de táxi pois estava carregando meu equipamento. Dessa fez, vou a pe. Como fazer para chegar nos lugares sem se perder? Simples: va no Google Maps, digite o ponto de origem e onde se quer chegar, fotografe a tela do computador e, usando o recurso de zoom para visualização de imagem da câmera, se deixe guiar. Não tem como dar errado!

São quase onze da manha e eh hora de um lanchinho pois, calculando bem, se for esperar para almoçar com
meu amigo que soh chega pouco depois da uma da tarde e antes vai passar no hotel – de auto atendimento, sem funcionários na portaria – so iremos encara alguma comida la pelas duas. Nesse clima frio a fome eh constante.

Preparo um sanduíche de atum, ponho-o no forno para esquentar. Comida fria eh coisa de dinamarquês, reptil ou barata!!

Baratas, baratas... Um outro amigo ficou com as chaves do meu apartamento e tem se utilizado dele nos fins-de- semana. Deu-me a péssima noticia que pequenas baratas tomaram conta do lugar. Não consigo entender pois isso nunca aconteceu antes! Ele me contou através de skype, uma das melhores invenções do homem – no caso, o homem foi um dinamarquês que, posteriormente, encheu el culo de dinheiro com a venda de sua criação.

Parte da minha rotina eh ditada pelo Skype ou Facebook pois assim mantenho contato com meus amigos no Brasil. Entao, as 3 da tarde sempre estou online, procurando me inteirar das novidades ou apenas puxando assunto para não ser esquecido. A diferença eh de 5 horas de fuso e percebi que dez da manha por ai – três da tarde aqui - eh um momento de pico na rede. Muita gente esta online, começando o dia de trabalho, verificando emails ou apenas enrolando o tempo antes do inicio das atividades do dia. As vezes tiro um cochilo no começo da noite para ficar acordado ate tarde e poder falar mais tranquilamente com o povo, a essa hora, em casa e mais disponível.

A eminência da volta traz saudades e mal posso esperar para me sentar num daqueles bares nojentos, geralmente a beira do esgoto, com garçons que parecem sofrer de deficiência auditiva, mas que são os lugares favoritos desse povo de gosto tão peculiar que eh o recifense.

segunda-feira, maio 24, 2010

Diario da Dinamarca #8

Copenhagen, seu DJ favorito – eles ainda não sabem disso, mas um dia vão descobrir - esta de volta para casa! Feito filho pródigo ou cachorro perdido, feito marido arrependido ou gato briguento.
Entre o desembarque e a saída sou abordado por um cara gordinho e nervoso. “Sou sem-teto, tem 5 Kronos para mim?”, ele pergunta. Não dou esmola, normalmente, ainda mais pra europeu!! Que se fodam, malditos colonizadores!!! Quando disse que não entendia a lingua ele falou francês e depois inglês comigo. Da para imaginar um mendigo tão classe A?

Na saída, o desejado cigarro me enche de alegria. Observo três mulheres com longas pernas expostas, visivelmente bêbadas, usando saias que mais parecem cintos de tão curtas. Seriam prostitutas ou apenas, como na musica de Cindy Lauper, “girls that wanna have fun” – traduzido livre e toscamente por meu amigo de adolescência, Tata, como “garotas que querem putear”. Elas esperam uma colega que, ao chegar dispara aquele barulho histérico típico das adolescentes. Vão meninas, va, Gina, o mundo pertence a vocês!!!

O mesmo mendigo me aparece de novo com a mesmo papo. Ok: dessa vez estou do lado de fora, fumando um cigarro, feliz por voltar para casa e meio arrependido de não ter puxado conversa antes com o maluco. Tiro da minha bolsa um saquinho cheio de moedas de um Krono, dou para ele e pergunto como ele pode ser sem-teto em Copenhagen. Resposta não ha e, num gesto rápido, ele puxa minha mão, beija-a e desaparece.


Pego o táxi de volta para Meinungsdade 26, onde fica meu ninho nessa bela cidade. Sento no banco da frente e arrisco assunto com o motorista, um afro-negro convicto por natureza e sorte. Pergunto de novo como pode haver sem-teto nessa sociedade tão evoluída. Seria ele um viciado? Um alcolatra ou algo do tipo? Resposta: “em torno da estação tem muitos drogados, talvez seja isso, mas provavelmente deve ser doido. Não tem como ser sem-teto aqui a não ser que se queira mesmo”. Na minha cabeça passa uma serie de reflexões baseada no principio de que ele, o mendigo, estaria negando o modelo social estabelecido como um Proudhon moderno. Mas, deixa pra la, fique com seus pensamentos, Helder, senão a conversa vai parar por ai. Quem se importa com isso?

E seguimos falando de bundas dinamarquesas, bundas brasileiras, chegando a conclusão que brasileiras são as mais gostosas, que ele deveria poupar grana e passar um tempo na América do Sul. E que, pra sua felicidade e orgulho, negões se dão muito bem por aqui, na Dinamarca! E continuamos falando besteira, coisa que alimenta a rede social masculina, prolongando assim, a longa cervejada com Rodrigo, pouco antes de pegar o trem entre Arhus e Copenhagen.

Aqui, uma pausa para explicações: garotas, homens são crianças crescidas e, se esse tipo de dialogo lhes parece grosseiro, nos perdoem. Sejam compreensivas, superiores e entendam que essa eh nossa forma primitiva e infantil de dizer o quanto as admiramos, o quanto seus peitos, bundas, pernas, corpos, vozes, gestos, cheiros e cabelos nos encantam e nos transportam para aquele alumbramento tão bem descrito por Manoel Bandeira:

“E vi a Via-Láctea ardente…
Vi comunhões… capelas… véus…
Súbito… alucinadamente…
Vi carros triunfais… troféus…
Pérolas grandes como a lua…
Eu vi os céus! Eu vi os céus!

- Eu vi-a nua… toda nua!”

A saudável canalhice tempera a carranca da vida e, se for tomar pela letra de um tecnobrega da Banda Fruto Sensual, cantado por uma voz feminina, que andou freqüentando meus ouvidos recentemente, eh bem vinda entre as mulheres:

“um pouco de canalha, so pra temperar;
safado e gostoso tem o seu valor,
caiu na minha rede,
aceita meu amor.”

Pra terminar o tema: fujam de homens certinhos, limpinhos, com nojinhos e gostos. Esses caras são uns malas narcisistas e não estão nem ai pra vocês.

Segunda-feira chega como feriado, o que significa: lojas fechadas, pouca gente na rua, nada para fazer a não ser andar a esmo por essa cidade-de-boneca fantasma.
Chove fino e nem da para sentar num café e passar o tempo lendo algo. Para completar, meus poucos amigos estão ocupados e recolhem-se a suas atividades domesticas e profissionais.

Tento achar um outro mendigo que eh quase onipresente em Copenhagen, com uma visível e inquestionável credibilidade: usa um chapéu típico de derviche – que eh característica dos mendigos persas – e ele tem cara de persa, enfim ... um pedinte profissional, um homem executando sua arte distante de suas origens.
Seu rosto talhado e duro, olhos castanhos mortiços, exalando uma infinita humildade embora que, firmemente insistente, havia me chamado atenção algumas vezes.

Encontro-o facilmente e dessa vez ele não esta na posição habitual: corpo curvado, mão esquerda estendida, emitindo seu apelo em palavras que mais pareciam preces do que mendicância – prece eh mendicância divina, então da no mesmo! Bom, em algumas culturas religião e desapego material estão fortemente ligados. E esse parece ser o cara! Mesmo nosso persa – já estou acreditando nisso! – esta entediado com o feriado, com a falta de gente na rua e prostra-se num batente, calado, observando o vazio.

Dou uma boa esmola, 20 kronos, e peco, através de gestos, para desenha-lo. Ele consente, eu saco meu sketch book do casaco e começo a tarefa apoiando-o com a mão esquerda.
Faço um esboço simples e mostro. Para minha satisfação, ele aprova com sorriso misterioso mas francamente simpático.

Apenas gente correndo em suas malhas de frio, ciclistas indo de um lado para o outro, locais fazendo compras em pequenos quiosques, única coisa aberta nesse dia, povoam Copenhagen. Ah, claro, tem os donos de cães com seus animais de todos os tamanhos e raças, levando seus bichos para se exercitarem e emporcalharem a cidade. Se o mundo fosse dividido em quem gosta de gatos e quem gosta de cachorro, eu estaria na primeira categoria. Cães são animais estúpidos: latem e rosnam quando vêem um semelhante mas no final tudo acaba numa longa cheiracao de cu.

Animais de rua não ha, nem mesmo os famigerados esquilos, tão presente em Londres. Tem um enorme gato preto, esquivo, desconfiado, que ronda os condomínios da região e deita-se de barriga pra cima quando faz sol.

Tenho visto celebridades por aqui. Ou, gente muito parecida com as que estão no meu rol particular de celebridades: um Kurt Vonnegut aqui, um Gunter Grass acolá, Karen Blixen tomando sorvete e, outro dia, juro que vi Salman Rushdie enfiando a cara num pote de cha num restaurante. Fantasmas, clones, frutos de uma imaginação ociosa ...Isso me faz lembrar do meu terceiro mendigo: o sósia de Ryan Larkin.

Quando saia de uma estação de trem vi aquele cara magro, grande e desajeitado, pedindo dinheiro como quem dança: abre-se as pernas, estica-se os braços – um para frente, outro para trás, faz-se uma curvatura de agradecimento e levanta-se um chapéu imaginário. Exatamente como fazia o Ryan original no filme do diretor Chris Landreth.

O curta eh uma animação sofisticadíssima que recolhe imagem e som ambientes posteriormente manipulados. Começa com perturbadoras observações do diretor sobre seqüelas que a vida nos causa e segue narrando a trajetória de Ryan Larkin, um dos grandes animadores canadenses, numa terra de gigantes da área. Ryan chegou a concorrer a um Oscar, foi reconhecido no mundo inteiro e, num estalo de dedos, perdeu a sanidade, o gosto pela vida, foi parar na rua, virou um homeless, um sem-teto.

A idéia de perder a sanidade já foi tema de uma das minhas canções e eh uma espécie de obsessão pessoal. O quão longe podemos ir em nossas perdas? Como equilibrar a realidade que compartilhamos com os outros e a que criamos para nos mesmos ? E, principalmente, em que exato momento perdemos o equilíbrio e desabamos no vácuo da insanidade?


Não tenho resposta, por isso vou na janela, acendo um cigarro e bebo mais um gole de uísque.

"O futuro eh incerto e o fim esta sempre proximo", ja dizia Mr. Morrison...

sábado, maio 22, 2010

Diario da Dinamarca #7

O sol brilha com vontade nessa tarde azul e quente em Arhus. Ca estou, precisamente ha 4 lances de escadas, no seguinte endereço: Skouvejen 46G, de frente para um porto repleto de veleiros, olhando para o mar e, alem dele, mais um pedaço de terra em que se vê plantações verdes, casas, um fino fio de fumaça... no inicio pensei que fosse uma ilha mas não eh. A paisagem que observo eh uma espécie de baia nesse complexo desenho do território dinamarquês.
Do lado esquerdo, um bosque com imensas arvores e embaixo casas com muros feitos por plantas podadas com rigor que, somado aos pinheiros, flores e arbustos dispersos fazem que o verde preencha grande parte do meu campo de visão. Nos quintais das casas de arquitetura classica, mesas longas, churraqueiras, uma piscina, pássaros passeando e ciscando sob o olhar de quem, como eu, simplesmente se deixa largar na varanda e aproveita esse belo quadro vespertino.
Do lado direito, uma grande varanda e la, ao fundo, um homem toca violão enquanto uma bela moca o acompanha cantando e movendo-se languidamente.

O verão parece anunciar sua chegada, eh época dos casais saírem as ruas, espalharem sua felicidade pelos parques, calcadas, estações de trem, jardins... pelas escadas, sentados nos batentes, no gramado, no chão de pedra, eh tempo de sussurros, olhos brilhantes, mãos dadas, beijos ternos.

Para mim, sobra uma cancão de Leonard Cohen chamada “Tower of Song”. Nela, o grande poeta canadense constrói a imagem de um torre onde os músicos vivem isolados e, em certo momento ele pergunta a Hank Williams “o quanto se pode ser so” e completa “ Hank Williams ainda não me respondeu mas escuto-o tossindo durante toda a noite”.

Ouvi essa musica pela primeira vez nos distantes anos 80 e na época mal prestei a tenção a letra pois havia uma garota que era a única coisa que me importava nesse mundo e assim foi durante muito tempo, os melhores anos da minha vida, cheio de uma plena e inesgotável felicidade.

Será que eu sabia o quanto era feliz?

Se a vida fosse perfeita teríamos um fantasma como o rei da Dinamarca, pai de Hamlet, soprando nos nossos ouvidos que “preste atenção, você eh feliz, aproveite, talvez não o seja nunca mais!”. Ou melhor, seria um Lupcinio Rodrigues, bemassombrando as vidas, avisando aos mocos, pobres mocos, que não deveriam ir ao inferno a procura de luz.

Mas, infelizmente, a gente soh descobre o que eh bom depois que perde. Aprendemos a duras penas, por comparação.

O tempo passa rápido e já estou na terceira semana. Ha poucos dias atrás houve uma festa na escola de musica e alunos do leste cantaram em coro algumas faixas balcânicas do meu set. No dia seguinte já era hora de ir para outra cidade, Alborg e fazer mais festa – a festa nunca tem fim - durante a noite. Foi o dia mais quente desde que cheguei aqui e não precisei de casaco nem aquecedor. A luz estava linda, tornando um bela cidade mais bela ainda. Muitas praças, muito verde, crianças correndo pela grama, gente carregando flores em suas bicicletas. Aqui trabalha-se pouco, soh ate as 4 da tarde e depois, carpem diem, camarada! Sem hora extra, use seu tempo livre para fazer algo por você mesmo.

Em Alborg, dia lindo de sol, hotel bacana, com dois banheiros enormes e muito espaço. La cortei meu cabelo!
Depois da passagem de som, ganho uma garrafa de uísque e volto a pe para o hotel, balançando-a e, eventualmente bebendo direto no gargalo enquanto ando. Sempre quis fazer isso....

Quando voltei para Arhus, fui andando a pe, puxando minha mala ate a casa do Rodrigo pois ele iria me trazer ate esse apartamento onde estou. Diante de tantas mulheres bonitas que via na rua, cutucuo-me uma certa melancolia feito botão de flor, pronta pra desabrochar, e me lembrei daquele poema de Baudelaire “A uma passante”, onde ele vê uma linda mulher na multidão, encanta-se por sua beleza, seus olhos, suas pernas, seus movimentos e, quando ela some entre os pedestres, ele conclui:

“Um relâmpago e após a noite! — Aérea beldade,
E cujo olhar me fez renascer de repente,
So te verei um dia e já na eternidade?

Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado — e o sabias demais!”

Como todo ideal, o ideal romântico se destrói se confrontado com a realidade, portanto, se o velho Baudelaire tivesse a oportunidade de casar-se com sua musa da rua, se juntos tivessem filhos, se um dia ele a olhasse e visse em sua frente uma mulher gasta pela maternidade, rodeada de crianças com nariz escorrendo e ela, ali, com o avental todo sujo de ovo, o que ele então ele escreveria? E ela? O que pensaria daquele homem que antes parecia tão brilhante e galanteador e agora cheirava a vinho barato e hash, embriagado, com a língua enrolada, sujo de lama e torto, se apoiando nas paredes?

Na noite anterior, no fim da festa, uma belíssima morena de olhos claros se aproximou com a segunda cantada mais manjada para seduzir um DJ: “vamos para minha casa, me ensine a mixar.”

(A primeira eh “vamos ouvir esses discos lah em casa”. Mas eu não uso discos, portanto essa cantada foi tirada definitivamente da minha vida e, talvez possa ser substituída por “vamos ouvir esses MP3s la em casa?” – coisa que não soa bem.)

Disse – e não menti - que estava cansado e queria ir para o hotel. Diante dessa reação, incomum para um moca bonita e desejada pela a maioria dos homens, veio a fúria seguida de um tom de voz mais alto e a ameaça tola de que se não fosse naquele momento, não seria nunca mais. Então saiu pisando forte, furando o chão com os calcanhares.

Aqui, uma confissão extraordinária: em dez anos de carreira profissional – e mais dez como DJ amador – nunca fiquei com nenhuma fan (embora tenha feita algumas estripulias com algumas delas), ou se fiquei, simplesmente não lembro, o que torna tudo irrelevante. Assim como Groucho Max não entraria num clube que o aceitasse como sócio, consequentemente não posso levar a serio gente que me ache brilhante, genial e bla, bla, bla... ou seria esse pensamento muito pouco generoso e totalmente egocêntrico?

Hoje, um sábado, acordei imerso em tédio, preguiça ate para sair e comer alguma coisa... mas a fome nos move e la vou, carregando esse corpo cansado pelas ruas pacatas de Arhus. No calçadão do centro da cidade uma bela exposição de fotos em preto e branco de pessoas bem comuns mas com o poder da lente, sob o olhar do fotografo, algo as torna estranho, poderiam ser portraits de ouro planeta com todas aquelas manchas na pele e rugas destacadas pelo contraste fortíssimo. E la estão aquelas estranhas criaturas, observando o cotidiano dos pedestres com seus cachorros, enfiadas em roupas colantes de corrida, casacos escuros, cabelos loiros.

Tento comprar algo para mim, um chapéu, um gadget qua;quer, uma roupa... mas ate para fazer compras eh preciso inspiração e estou vazio. Tudo o que queria era estar sentado num café com um amigo, rindo por besteira, observando a vida dos outros com malicia.

Volto para casa carregado de frutas, salada, vinho e camarão. Preparo algo para comer e lembro da historia de Nana. Quando ele foi morar em nova iorque não sabia falar inglês e tinha poucos amigos, então, eventualmente fazia um bom jantar, punha um vinho no centro da mesa, dois pratos e duas tacas. Deixava tudo pronto para duas pessoas mas comia sozinho, falava sozinho, como se estivesse recebendo alguem. Ha algo de belo e de melancólico nisso que nunca consegui esquecer.

Fiz uma salada, fui para a varanda e como lentamente olhando o oceano, esperando por Icaros em queda, um desastre maritmo ou simplesmente o canto das sereias.

quinta-feira, maio 20, 2010

diaria da dinamarca #6

Domingos são longos e desérticos e, lembro-me que, certa vez, quando me recuperava de um profundo estado de depressão, recebi um telefonema – dez horas da manha de um primeiro dia do ano - de Lulu Santos e ele disse “eh preciso atravessar nossos desertos com serenidade” (pop como sua musica). Sigo seu conselho e decido ficar soh nesse dia da semana que tanto me afeta desde que me entendo por gente.

Como tenho de viajar de novo na segunda-feira, incremento meu domingo com duas aventuras adiadas ha algum tempo: fazer a barba e lavar as roupas acumuladas em 15 dias fora de casa.

As mulheres e alguns homens afortunados não entendem como pode ser complicado fazer a barba quando se tem pelos grossos, firmes em sua vontade de crescer e se multiplicar numa pele sensível. Vou ao banheiro e planejo meticulosamente como executar essa tarefa dentro das dimensões e condições do banheiro da casa.

Separo o estritamente necessário, que consiste em espuma de barbear, um aparelho descartável, toalha e sabonete.

A melhor hora de se barbear eh na parte da manha pois os danados dos pelos ainda estão sonolentos e de bobeira, então fica mais fácil e menos doloroso remove-los.

A primeira etapa dessa ação eh entrar no chuveiro, tirar toda a oleosidade do rosto com sabão e, na sequencia, ir para frente da pia onde estarão as ferramentas necessárias para realizar tal complexa operação.

Primeiro passa-se a espuma de barbear pela parte que deve ser raspada, depois simplesmente usa-se a lamina com movimentos suaves e sem muita pressão para que ela faca sua parte e deixe o rosto liso como o de um bebe.
A maneira mais eficiente de fazer a barba eh cortar os pelos no sentido contrario ao seu crescimento, removendo-os o mais perto possível da sua raiz.

O primeiro obstáculo eh que, por causa do tamanho do banheiro, todo o vapor da água quente se acumula no espelho, embaçando-o terrivelmente e atrapalhando todo o trabalho. Por isso a presença da toalha ao alcance das mãos, com o objetivo de enxugar o vapor e tornar a imagem do espelho a mais límpida possível.

O possível, nesse caso, eh uma mancha que parece vagamente comigo, um borrão onde se distingue os olhos escuros, a espuma branca e um espaço cor-de-pele. Não ha sutilezas nessa geografia facial: o monte que seria o nariz não se destaca e muito menos as rugas ou os pequenos sinais que marcam meu rosto.

Com paciência executo a tarefa e vejo pequenos pontinhos pretos ocuparem o espaço da pia. Então surge o segundo problema: eh preciso retira-los de la com calma e atenção mas isso soh será feito quando a primeira etapa for concluída. Um pouco de tato ajuda a identificar o que os olhos não conseguem ver no espelho e pouco a pouco estou barbeado.

De volta ao chuveiro, sinto a água escorrendo sobre a pele lisa, um prazer imenso, uma espécie de limpeza espiritual!!

O banho segue ordinário como qualquer outro banho mas o fim so chegara posteriormente com a limpeza completa do chão, com auxilio de um pequeno rodo e a eliminação total dos vestígios de pelo sobre a parte interna e bordas da pia.

Contente por ser bem sucedido nessa empreitada, começo a sonhar com a próxima, de nível de dificuldade maior, que eh cortar o cabelo com a maquina que trouxe comigo na bagagem.

Agora, a segunda atividade do domingo: lavar as roupas. Antes, combino o almoço com uma batida de campo para que nada de errado. La esta ela, a lavanderia com suas potentes maquinas industriais que molham, torcem, enxáguam e secam com perfeição. Ainda bem que na época e no lugar onde Cartola morava não havia nada disso ou teríamos perdido uma das mais belas musicas do cancioneiro brasileiro: “ensaboa, mulata, ensaboa; ensaboa, to ensaboando...”
Confiro se esta aberto, se tem muita gente, se as maquinas estão funcionando e descubro que esta tudo OK.

Tenho fé que as coisas vão da certo!

Me dirijo a um restaurante especializado em saladas, a coisa mais próxima de um self service brasileiro, por aqui. As porções ficam expostas, protegidas por um vidro e escolhe-se o que quer, na quantidade desejada. Brócolis, cogumelos ao molho de tomate, um pouco de cuscuz marroquino e uma porção de pasta de atum. Detalhe que me incomoda bastante por aqui: come-se frio, da salada ao peixe, e mesmo um almoço a la carte não vem da cozinha, sabe-se la por que.

Eu peco para por meu prato no micro ondas por alguns instantes, explico que sou latino, que nos comemos quente e me divirto com a cara espantada do funcionário.
Enquanto espero minha comida, lembro de uma historia que Manu Chao contou-me uma vez, logo que o conheci: ele disse que estava tocando na Espanha, apoiando uma greve dos estivadores, quando rompeu uma tremenda confusão com a policia. O pau cantou feio ate a hora em que a sirene da bóia tocou e, imediatamente, cessou-se a briga e todos – operários e policia - correram para almoçar antes que a comida esfriasse. Comida fria não da sustança, parece que não alimenta e a gente se sente fraco e sem graça.

Levei dois sacos de plástico cheio de roupas sujas, um com as pretas e outro com as brancas. La dentro, aquecedor ligado, tento descobrir como fazer as maquinas funcionarem. Como perdi todas as aulas de dinamarquês na escola, infelizmente não consigo entender as instruções e peco ajuda a uma mulher que, muito pacientemente, me explica o que fazer e ainda por cima me da uma boa quantidade de sabão, detalhe que me havia escapado.

O sincero interesse em ajudar quem precisa de uma informação, a gentileza natural e genuína, o respeito as diferenças que constituem a cultura do pais estão me seduzindo fortemente. Esse comportamento esta no cerne do povo e foi moldado lentamente apos séculos de lutas, derramamento de sangue, brigas territoriais, invasões... eh um pais maduro, onde o estado reflete as aspiracoes do povo e nao de um lider filho da puta, com um espírito de cidadania que se baseia em dois princípios básicos: respeito e confiança.
No cotidiano isso pode ser notado através da absoluta honestidade de comerciantes, taxistas, garçons... e se, por exemplo – se você for brasileiro ou franco-brasileiro -, você quiser entrar num club gatuitamente, apenas diga que saiu para fumar. O porteiro certamente lhe dara credito!

(A roupa acaba de ser lavada e agora eh momento de por na secadora. Para secar, enfia-se algumas moedas num painel e aperta-se o botão com o numero correspondente a maquina. Cada minuto custa um krono, ou coroa, a moeda local.)

Comparado a Dinamarca, o Brasil revela-se um pais grotesco e bruto. Na falta de um passado de glorias, coisa que alimenta e une a idéia de nação,o povo brasileiro se crê gentil quando, na verdade, trata-se da mais pura conveniência preguiçosa. Discutir da muito trabalho...melhor sorrir falsamente! Uma piada contada por um suíço diz que “no Brasil as coisas são assim: não se deve roubar, mas você pode roubar e você rouba; não se deve pegar a mulher do amigo, mas você pode e pega” e a conclusão, entre outras coisas que não se deve e se faz eh que “no Brasil a única coisa que não pode eh ser antipático”.

(E la vou eu, colocar mais 2 kronos na maquina e penso quem inventou esse sistema louco em que não se resolve de uma vez o tempo de secar a roupa, no que um dinamarquês presente concorda sorrindo, “eu também não entendo”, diz ele).

Não posso imaginar como conciliar esse espírito brasileiro, construído historicamente na base da mentira e corrupção com um sentimento de cidadania e dignidade.

(depois de muitas moedas, finalmente minhas roupas estão secas. Sinto o calor e a maciez delas em minhas mãos enquanto dobro-as carinhosamente, orgulhoso de ter superado mais um obstáculo do dia-a-dia)

Voltando a Kapuscinski, ele conta um encontro com um democrata russo na era da perestroika e, em suas argutas palavras, “eh uma vitima voluntária pois se deixou envolver pela problemática comunista” pois “a mente do democrata ocidental move-se com naturalidade por entre os problemas do mundo atual, reflete sobre como viver bem e feliz, o que fazer para que a tecnologia moderna sirva cada vez melhor ao homem e como proceder para estimular o ser humano a produzir cada vez mais bens materiais e espirituais”, concluindo, “ esses assuntos estão fora do horizonte intelectual do democrata moscovita”.

O Estado brasileiro eh tão medíocre que discuti-lo – levando em consideração todos os seus lideres messiânicos, malucos, arrivistas, vaidosos, egocêntricos, personalistas ou, simplesmente, criminosos -soa como afundar numa poça de merda.

(chove fininho e uma parte da roupas, ponha na mochila de costas, enquanto outra parte carrego num saco plástico que balanço ao som da musica gypsy que vem do headphones)

Na segunda-feira, tomo mais uma vez o trem para Ahrus, seguido por um trem municipal ate Bjerringbro onde darei uma rápida aula sobre musica brasileira, das origens ate o presente. Uma introdução, obviamente, para quem conhece apenas o exótico e estereotipado de um pais tão grande e complexo. A paisagem ja eh familiar e aguardo com ansiedade a travessia subaquática do Great Belt, um braço do oceano que divide a ilha onde esta Copenhagen de outra ilha, onde ficam as cidades para onde estou indo e para onde já fui anteriormente.
No escuro do túnel o ouvido reclama, perde-se o contato com a internet – sim, tem conexão dentro do trem!!! – e do lado de fora eh puro breu.

O novo esta no trem seguinte: campos vastos, casas de madeira que aquecem com eficiência e podem ser construídas muito rapidamente, grama verde com pequenas flores brotando como estrelas, bucolismo e paz, como se a civilização não existisse e tudo aquilo não passasse de um filme. Mas, como num filme de David Linch, imagino como será a vida privada dessas pessoas. O que fazem nos interiores de seus lares, que perversões conduzem suas vidas, que desejos secretos as devoram por dentro, o que habita em seus sonhos, qual a real natureza dessas pessoas?

Os turcos usam a borra do café para ler o futuro e alguns vão aos jornais em busca do horóscopo. Números mágicos, nuvens no céu, entranhas de animais, fogo, o desenho que se forma nos troncos de arvores cortados...

Qualquer coisa serve como oráculo. O meu oráculo eh o ipod, no modo shuffle, aleatório e hoje, bons sinais através da doce voz de Ella Fitzgerald:

“From this happy day, no more blue songs,
Only whoop dee doo songs,
From this moment on.”

Seguido por Hyldon:

“Eu vou esquecer de tudo,
das dores do mundo,
não quero mais saber quem fui
mas quem eu sou.”

Promessas boas, tão confiáveis como as enigmáticas previsões de Quiroga.

Sou recebido muito formalmente e levado a escola de musica que fica ha uns dez minutos a pe da estação. La, alunos que terminaram o equivalente ao nosso secundário vão ter a chance de se educarem musicalmente antes de entrarem na faculdade e, finalmente, se definirem como profissionais de mercado.

A escola eh uma espécie de internato, com quartos, cantina, biblioteca, um enorme labirinto asséptico e funcional. Depois de instalado, depois de montar laptop, teclado, depois de por livros na mesa e arrumar a cama, saio para dar uma volta nesse novo ambiente.

Para meu completo estranhamento não ha ninguém nos corredores ou, se ha, eh um gato pingado aqui e outro acolá. Silencio absoluto, apenas quebrado pelo sons de pássaros que vem do jardim, coisa estranhíssima para uma escola de musica! Computadores ligados com acesso a internet, latas vazias de cerveja, maquinas de refrigerante, uma voz trazida pelo vento, tudo isso indica que estudantes estão por ali. Mas...onde?

Tanto o professor que foi me buscar na estação e o que me convidou deram ênfase a hora do jantar: 18:30 – aqui usa-se o sistema de 24 horas. Isso foi repetido, em ambos os casos, mais de uma vez. Quando cheguei no restaurante, estava lotado de cabeças loiras, simplesmente todas as mesas ocupadas e um tímido buffe de dois pratos no balcão, embora que, nas mesas, houvesse bastante comida. Desnorteado, me servi com a comida la exposta e procurei um lugar para sentar dentro do meu campo de visão quando achei um vazio numa mesa ocupada pelo que me pareciam ser indianos.

Pedi pra sentar, no que fui aceito com ênfase fora do comum e, diante da minha timidez, me ofereceram pratos quentes, água e sempre que chegava algo, imediatamente me davam a honra de ser o primeiro. Tentei puxar assunto me indicaram um adolescente sentado a minha frente. Ele falava inglês fluente mas sem sotaque britânico ou americano, esse mesmo inglês internacional, lento e forçando uma pronuncia inteligível que uso.

Conversando, descobri que eram uma família do Sri Lanka, que a mãe dele trabalhava na cozinha e que o filho caçula era motivo de orgulho de toda a família por ter ganho seis mil e tantos Kronos num programa “Talent”, em cadeia nacional na Dinamarca, imitando Michael Jackson.

Depois de comer peguei um dois últimos exemplares que me restavam do meu disco e dei para o moleque que ficou bem feliz, ainda mais porque eu disse que conhecia Diplo, namorado de M.I.A., a grande estrela pop do Sri Lanka.

No quarto, uma questão aterrorizante: seriam todas aquelas pessoas fantasmas? De onde surgiram, para onde forma depois da refeição? O ambiente inteiro da escola cheira a silencio e eh de uma calma pertubadora...

Já de noite, não consigo dormir pois ouço meu coração batendo forte e alto sob os cobertores. A vida atrapalha o sonhos, literalmente, sem metaforas.

sábado, maio 15, 2010

Diario da Dinamarca #5

Perdi minha verdinha... me foi dada com carinho e com afeto, como um doce predileto, embrulhada num papel prateado, uma promessa deliciosa. A verdinha eh boa para muitas coisas, uma panacéia de fato: glaucoma, depressão, tristeza, tédio, males de amor e derrota no futebol; a verdinha alimenta a vida, aumenta o tesão e da fome.
Procurei-a por todo o quarto, nos cantinhos, nas meias sujas, na sacola de lixo, vasculhei no fundo da memória, nos bolsos da mochila e em compartimentos da mala dos quais nem sabia da existência.
E nada...
Estará embaixo da cama? Sob algum dos Cds que eu trouxe? Foi-se para sempre, como minha juventude: num piscar de olhos!
Ah, essa verdinha que alegraria essa noite fria e me trataria como uma amante ciumenta, tomando-me soh para si, levando-me noite adentro em sonhos estranhos e dando-me em troca, inspiração.
No dia seguinte, lembrei: estava dentro de um pacote de cigarros que eu tinha posto no lixo.
Adeus, minha adorada...

Anteontem foi dia de festa – algo agendado de ultima hora, em completo improviso - e a noticia que eu tocaria atraiu a atenção da comunidade brazuca local, ou melhor, das brasileiras. Alguem notou, passou um torpedo para outra e logo a rede de comadres estava formada. La pelas onze da noite começaram a chegar as mocas, a maioria solitárias, embora algumas trouxessem maridos e namorados a tiracolo. Um único brasileiro homem alem de mim era uma espécie de travesti moreno de formas delicadas, louco para se jogar no baile funk.
Ah, essa mistura de doçura e safadeza, de fragilidade e determinação, de ingenuidade e sabedoria intuitiva nata que tornam as brasileiras completamente irresistíveis para o homem europeu, envolvido numa verdadeira guerra de sexos, herança da cultura feminista de emancipação. Some-se a isso um fato importante: as mulheres as que me refiro não vieram estudar, construir uma carreira ou, como turista, gastar dinheiro numa utopia escandinava. Em sua maioria são pessoas simples, de origem humilde, sem muitas chances em seu pais de origem, sem perspectivas de vida senão através do homem branco e bem sucedido que realizaria seus sonhos de Cinderela. Destituídas de educação formal, economicamente não competitivas, concentram sua energia na forca vital da sedução e a pista de dança eh o terreiro apropriado para que um antigo ritual primitivo se renove. Envoltas em roupas justas que potencializam seus corpos carnudos e curvilíneos, com gestos universais que dizem muitos mais que palavras, elas evocam um sabath contemporâneo como poderosas feiticeiras que encontram na dança a fuga de um mundo que costuma frequentemente subjuga-las.
Dessa vez toquei para elas e sem nenhum pudor de mixar funks e tecnobregas com tracks obscuros e bootlegs perdidos, de faze-las felizes e, consequentemente, contaminar o resto do ambiente. Num certo momento notei que uma delas discutia com o namorado, de cara amarrada, chocado com a espontaneidade sexy da dança. Queria eu poder traduzir Chico Buarque para o dinamarquês e oferece-lhe um conselho de amigo: “por isso para o seu bem, ou tire ela da cabeça, ou mereça a moca que você tem”.
(não posso deixar de lembrar de uma passagem de “O Buda do Subúrbio, de Hanif Koreishi, quando o pai do protagonista, um indiano picareta que se faz de guru dos ricos ingleses, aconselha ao seu jovem filho: “Acumular cultura, ter sabedoria, nada disso importa, o mais importante eh ser sedutor”.Cito de memória, talvez não seja extamente assim, mas eh desse jeito que lembro.)

No final ainda rolou um back to back – quando dois DJs tocam juntos mixando sua musica com a do outro – com o Anders que não tirava um enorme sorriso dos lábios.
Noite divertidíssima e despretensiosa, sem egos, todos em harmônica comunhão.

Varias vezes me perguntei qual a função de um DJ. Seria demonstrar técnica, intelecto, representar um estilo, traficar canções, fazer as pessoas pensarem? Minha resposta atual eh: tudo isso mas, prioritariamente, entreter o publico. E não ha nada que me agrade mais nesse trabalho que ver uma audiência inteira se entregar de corpo e alma a uma faixa que nunca ouviu e provavelmente não ouvira de novo por ser completamente deslocada de sua cultura.

No começo da tarde do dia seguinte tentei me perder em Copenhagen, andei as cegas sem prestar atenção ao caminho, apenas flanando entre os pedestres como aquele personagem descrito por Edgar Alan Poe em “Um homem na multidão”. Mas por mais que eu me embrenhasse nas ruas curvas e becos estreitos do centro da cidade sempre me via de volta a um lugar conhecido, a uma referencia já vista, ao caminho de casa.
As cinco, Marisa me ligou avisando que estava em Copenhagen e fomos nos encontrar num café que tenho freqüentado quase diariamente. Logo Anderrs se juntou a nos e entre rodadas de cerveja, café, armanhaque e Jameson, resolvemos alguns problemas do mundo, aprendemos novos palavrões, conhecemos novas musicas, filmes e terminamos a noite no Saxon’s, um antigo bar de reggae e hip-hop, hoje tomado pela molecada do dubstep.
O dubstep eh um estilo muito ligado a cena de Londres. Filho eletrônico do reggae, so eh possivel por causas das maquinas capazaes de produzir freqüências extremamente baixas daquelas que, literalmente, sentimos no corpo como uma massagem. Na inglaterra fui a clubs especializados, basicamente freqüentado por uma molecada chapada que balança a cabeça e move o corpo devagar, em precário equilíbrio. A lentidão dos tracks e o experimentalismo de alguns DJs fazem do estilo uma musica pra dançar mais com a cabeça que com o corpo.

No Saxon’s lotado por uma faixa etária em torno dos 18 anos, pouca chapacao e muito hype. Não eh a toa que me fez lembrar de São Paulo e suas cenas mal clonadas, falsas como os peitos de uma celebridade televisiva.

Peguei o trem para Arhus com o objetivo de participar de um festival de literatura. Rodrigo, o cara que me convidou e planejou essa viagem, mora lah e foi me buscar na estação para irmos direto ao pequeno teatro onde o evento se realizaria. Desde o primeiro contato com os organizadores senti que tinha caído numa roubada. Minha impressão era que tanto produtores quanto atrações tinha aquela mania irritante de cultivar um mundinho “artístico” que tanto detesto e desprezo. Aquele tipo de ghetto punheteiro, aquela atitude medíocre e mesquinha de se refugiar na “arte” como algo puro, milhas alem do mundo la embaixo, arte como status intelectual e superior, arte separada da vida. A aparência nunca mente: os caras se vestiam como se estivessem num jazz club da década de 50 ou numa academia russa, molhando o bigode de cha acompanhado por Gogol. Barbas estapafurdias, sobretudos de brechó, boinas francesas, olhar e fala grave somado a um bovino ar de superioridade intelectual.

Na mesa, cercado de cuzoes, pela primeira vez encarei a grosseria dinamarquesa: ninguém dirigia a palavara a mim e falavam apenas em sua língua, com gestos definitivos de quem estavam descobrindo alguma grande verdade. O pior eh que eu estava quietinho no meu canto, lendo um livro, e foram eles que insistiram para que eu me juntasse ao grupo!

Chegar em Arhus deu um enorme trabalho: três horas de trem carregando uma mala pesada, sem cachê nem hotel. Eu deveria ficar hospedado na casa de um dos voluntários que so iria embora no fim de tudo, lah pelas duas da manha. Por acaso eu também era a ultima atração e ainda eram seis da tarde. Rodrigo muito gentilmente ofereceu-me um pouso em seu apartamento, onde pude dar uma breve cochilada e, feito isso, voltei ao ninho dos bárbaros. Meu amigo Jack (Daniels) me aguardava por lah.
Alguns bebem cerveja, eu bebo uísque ou bourbon no mesmo tipo de copo e na mesma quantidade, cheio ate a borda. Depois de meio copo eu estava pronto para circular, tagarelar e, quem sabe, descobrir alguem bacana naquela poça de merda.
Acho que estou doente de bomhumorismo crônico pois nada alem de sono ou cansaço tem me abalado, então acabei me divertindo, mesmo quando um clone pretensioso e sem graca de Fausto Fawcet subiu ao palco para derramar no publico sua auto-indulgencia (“eu era herói quando os heróis costumavam vencer, bla, bla, bla...”). com uma dramaticidade afetada ele jogava no chão as paginas lidas de sua “obra”, lambia o dedo para vira-las – ah, como eu queria um Humberto Eco aqui, para por arsênico no papel e ai sim, teríamos um show de verdade! – fazia sons estúpidos com a boca e, acreditem, havia gente interessada naquela baboseira. Tem gosto pra tudo, pro bem e pro mal.
No camarim, puxo conversa com um senhor negro que la estava, sentado no mesmo lugar, posição ereta, terno escuro de onde saltava um inesperado chaveiro com uma zebra de pano na ponta. Cabelos brancos, olhos acinzentados, mãos firmes sobre os joelhos, tinha um impressionante ar de dignidade que me chamava atenção ha horas e soh depois de botar a timidez para correr, perguntei para ele se era musico ou autor, no que ele respondeu que iria tocar e ler seus poemas.
Sem saber eu estava diante de Henry Grimes, multinstrumentista que tem em seu currículo, colaborações com grandes nomes do jazz como Gerry Mulligan, Sonny Rollins, Thelonious Monk, Benny Goodman, Charles Mingus e Don Cherry, entre outros. Uma verdadeira lenda viva de 75 anos de idade! Muitas imagens devem ter passado no espelho de sua íris, mudanças de costumes, pobreza e luxo, fama, multidões, sortes de varias naturezas... como eu gostaria de ver o filme da sua vida, os ensaios, os rostos do publico e suas roupas que cambiavam com o tempo, clubes, lagrimas de alegria e tristeza, descobertas e inquietações que nem conseguimos sequer imaginar, chegadas em terras distantes, despedidas, perdas e, claro, as mulheres olhando de volta, encantadas pela musica sublime.
Penso nos cheiros da comida de infância de sua Filadélfia natal, nos perfumes e camarins empestados de fumaça e suor e a doce frangrancia das estações em diferentes partes do mundo.
Sua manager tinha uma completa e estranha devoção por ele e conversando com os dois, defendi as possibilidades positivas da internet como meio de espalhar cultura, obviamente, não os convenci mas, em certo momento e, apesar de reclamar do youtube, ela me mostrou orgulhosamente a quantidade de vídeos sobre ele naquele site.
Quando comecei meu show já não havia quase ninguém na platéia mas Rodrigo, ja um pouquinho alto pela cerveja, e sua namorada estavam la e bem animados. Toquei para os dois que dançavam - como na musica de Van Morrison - “the way young lovers do”.
Para mim essa viagem não trata de carreira ou dinheiro mas de auto-descoberta e reaprendizado, então adorei retribuir a gentileza de duas pessoas que me trataram tão bem e com um carinho que suspeito não merecer.

A noite ainda me traria Anna, minha anfitriã, que me levou para casa – segunda vez que ando em carro particular na Dinamarca pois ninguém precisa disso por aqui -, ofereceu-me sua cama quente e confortável e ainda tocou double bass para alegrar esse velho senhor.
No dia seguinte acordei so e um pouco aperreado. Onde estará Anna? Tento esconder essa pergunta e manter-me calmo diante de um lugar que não conheço, isolado e perdido num condomínio residencial, numa terra estranha e fria. Bebo água, vou ao banheiro e tenho uma grande surpresa: alem da cama de Anna ser a melhor ate agora, seu banheiro eh grande, aquecido e confortável. Tomo aquele longo banho, demoro-me curtindo a água, o calor, a sensação de limpeza e, diante disso, o dia parece sorrir cheio de bons ventos. Ah, mais uma coisa: havia um espelho grande, de modo que pude observar meu corpo por inteiro, coisa que não fiz desde que cheguei. Acho que não engordei e arrisco ate a dizer que a barriga esta encolhida apesar dos kebabs e das massas.
Minha anfitriã retorna meia-hora depois e inicia um belo ritual de café da manha.

Na ida a Arhus, uma coisa me encantou no trem: o homem que vendia comida e bebida era um senhor grisalho, sorridente e de extrema gentileza. Depois de passar com o carrinho pelo meu vagão, ele retornou trazendo uma pêra sobre um guardanapo vermelho, apoiado em suas mãos em concha. Seus movimentos eram de absoluta perfeição estética, como se levasse uma oferenda para algum Deus, como se o futuro da humanidade residisse naquela fruta. Admirei-o, invejei-o, pois sei que nunca conseguirei carregar uma fruta com tamanha elegância.

Anna me fez lembrar esse homem pois ela também movia-se com precisão e detalhe dentro da pequena cozinha, pondo paes no forno, descascando e espremendo laranjas, arrumando a mesa e montando uma cestinha para quando os paes estivessem quentes. Em nenhum momento uma sombra sequer de rudeza ou aflição, uma pequena e bela coreografia particular num cenário banal e cotidiano.
Sua gentileza infinita fez-lha me levar ate dentro do trem, ajudar-me a por a pesada mala na prateleira sobre meu assento e soh então nos despedimos.
Voltei tendo a frente um homem grande e entediado e, de lado, uma adolescente estourando espinhas diante de um espelho portátil e ouvindo hop-hop tão alto que eu conseguia distinguir cada uma das faixas.

Comprei um gravador pequeno, de alta definição, bem poderoso – eh como um binóculo sonoro! - e meu hobbie agora eh gravar sons ambientes com o objetivo de fazer um soundscape, uma paisagem sonora, como jah fiz quando visitei Cuba pela primeira vez. Com ele posso ouvir alem do que o ouvido alcança. Na noite que parece silenciosa ouço crianças falando na vizinhança, cachorros, sons monocordicos de tv, risos, copos brindando, talheres sendo depositados em pratos, vozes, pássaros cantando... enfim, descubro que na escuridão ha vida e que a vida segue por ai, independente do que nos aconteça.

quarta-feira, maio 12, 2010

Diario da Dinamarca #4

Muita chuva no dia de hoje, o que significa ficar em casa mais um dia. A noite toco num lugar super agradável chamado Barbarelah ao lado do Anders, membro do Junkyard – conhecido e excelente grupo de dub local – e da Carla, carioca, ex-back vocal de Daude, atualmente morando na ponte Rio-Copenhagen.

A chuva foi uma boa chance de testar uma jaqueta que comprei ontem sob sugestão de um amigo. Eh basicamente um jaqueta para esporte no frio então eh leve, protege do vento externo e transpira-se sem problemas. Ela ficou toda molhada mas eu sai incólume, sequinho, quente e sem a sensação de estar vestindo uma armadura como era o casacão anterior, muito útil, muito eficiente mas pesado como a consciência de um deputado.

Fui num kebab comer algo – um kebab, claro! – e estava exepcionalmente delicioso. A carne do Kebab eh o que no Basil se chama churrasco grego, aquele cilindro de carne processada e bem temperada. O Maior que eu jah vi foi em Istanbul e tinha uns dois metros que era consumido rapidamente em poucas horas.
Para preparar, o cara do restaurante corta a carne em fatias fina, mistura com salada, enrola numa massa igualmente fina e esta pronto. Comida completa com proteína, carbohidrato, legumes e com uma boa relação custo beneficio. Em alguns lugares esse tipo de ambiente parece sujo e descuidado mas aqui inspira higiene, portanto, sem problemas para o corpo.

Andando sob a chuva me lembrei de um pequeno poema de Bertold Brecht :

“Para Ler De Manhã E À Noite

Aquele que amo
Disse-me
Que precisa de mim.
Por isso
Cuido de mim
Olho meu caminho
E receio ser morto
Por uma só gota de chuva.”

Já repeti isso pra mim varias vezes em muitas viagens, em momentos difíceis e desanimadores quando havia um porto seguro, um lar e uma razão para voltar a casa.
Hoje tem apenas a casa e nesse momento cuido de mim apenas por mim. Meu amor virou o trabalho e eh a ele que não quero desapontar. Ficar doente significa perder shows ou comprometer a qualidade deles. Para um homem de formação romântica como eu eh meio desapontador tornar-se isso.
(como dizem os russos, “ A vida eh assim mesmo”.)

O amor, como a liberdade ou a arte são conceitos vagos que se adequam a visão daqueles que os buscam e não tem princípios morais nem significam necessariamente o belo, o bom, o certo... Liberdade para mim tem sido a solidão, a idéia de que posso sumir, que posso não voltar, que meu desaparecimento não afetara a vida de ninguém. Exerço meus vícios com demasia ou simplesmente me protejo da chuva. Tanto faz e esse tanto faz eh um verdadeira representação do espirito livre.

Andando pelas ruas penso como nos, no Brasil, somos um povo cheio de diferenças físicas bastante visíveis, a mistura de raças gerou seres feitos em moldes diferentes, cores, tamanhos, cabelos, gestos e linguajar tão vastos quanto a dimensão do pais. Rostos ossudos são primos de caras redondas como a lua, gordinhos sararas tem irmãos magros e de pele amarronzada, e casais, um deles pode ser loiro, com pentelhos escuros combinando com uma morenas de cabelo amarelado.
Isso traz tipos marcantes, resultados de tantas misturas, imagens fortes e singulares a qual nos acostumamos no dia-a-dia e que estranhamos a ausência quando num pais mais homogenico como o Japão ou ... a Dinamarca.
As loiras são tão parecidas umas com as outras que já me dão enjôo. Não sei distingui-las, todas saídas de uma fabrica onde as maquinas estão bem reguladas e o controle de qualidade eh rígido e exato. Quando encontro minha room mate no ambiente externo levo alguns segundos para separa-la mentalmente de seu grupo de amigas.

Ainda por cima vestem-se de modo idêntico: roupas escuras, sóbrias, botas de frio e,eventualmente uma luva. Para mim soa como um exercito de anônimos onde a idéia de moda como forma de expressão esta diluída numa formula simplória. Ou, quem sabe, o simplório sou eu...

Falando de cores, estou lendo um livro de Ryszard Kapuscinski, “Imperium”, sobre seu contato com a extinta União Soviética. La pelas tantas, descrevendo a brancura absoluta da paisagem siberiana, um nada feito da ausência de cor, sagrado por seu vazio, onde cultua-se os animais brancos como divinos, ele nota o valor do preto e do branco em culturas diferentes:
“ Em civilizações onde cultiva-se a angustia da morte, os enlutados vestem-se de negro para afugentar a morte, isola-la, restringi-la ao defunto. Contudo, la (na Sibéria) onde a morte eh vista sob outro prisma, a postura existencial também eh outra: os enlutados vestem-se de branco e de branco vestem o morto – o branco aqui eh a cor da aceitação, desígnio do destino.”

As roupas nas lojas dos “árabes” são pudicas mas, inesperadamente, ha uma cor forte e viva saltando misturado a dourados e pratas enquanto nas lojas dinamarquesas a discrição dos cinzas e pretos se sobressai alternando-se com tons pasteis desprovidos de energia vital.

segunda-feira, maio 10, 2010

Diario da Dinamarca #3

Duas peruas dinamarquesas passam na rua, exatamente como personagens de Sex and the City: cabelos escovados, roupas caras e fazendo toc toc com suas botas de grife. Dois garotos “árabes”, vestidos a caráter do melhor estilo b-boy falam alto enquanto discutem alguma coisa que não parece ser grave, uma linda mãe pedala sua bicicleta adaptada com um carrinho de bebe e, la dentro, escondidinho segue sua cria protegida do frio por uma manta grossa.

Um homem sorri para mim enquanto uma ruiva de cabelos cacheados para a bicicleta bem na frente de casa e toca a campanhinha. Logo percebo que vai ter mais um jantar por aqui, fruto da sociabilidade da minha room mate.

Grande parte do meu tempo eh restrito a esse quarto e o mundo não passa de uma janela que abro com freqüência para fumar. Ontem, no domingo, cheguei de um show, o primeiro de muitos que virão, e estava tão feliz e cheio de energia que queria sair, conversar, falar besteiras mas não tinha nenhuma companhia. Comprei uma bebida, baixei um monte de filme e fiquei trancado no quarto enquanto um animadíssimo jantar acontecia na sala.

Sei muito pouco ou quase nada sobre a pessoa que me alugou esse lugar apesar de estarmos sobre o mesmo teto. Isso eh bem comum por aqui – quero dizer, em toda a Europa. Não consigo me imaginar agindo desse jeito no Brasil, mesmo que eu alugasse uma parte do meu apartamento exclusivamente por dinheiro. Nosso caráter eh gregário, moldado por uma cultura complexa que nos ensina a se envolver com estranhos e abraça-los como irmãos ao mesmo tempo em que se cultiva a fofoca e a bisbilhotice, instituições que andam de mãos dadas com a intimidade. Aqui, sabe-se e leva-se a serio a máxima que “intimidade eh um caminho sem volta”. Melhor evitar!

No sábado fui para Odensa, um vilarejo a pouco mais de uma hora de Copenhagen. Tive meu momento de orgulho pois chamei o táxi por telefone – dois minutos depois ele estava na porta de casa -, comprei as passagens e cheguei na estação certa. Muito bom para um leso confesso que nem eu, cabeça-de-vento assumido, aéreo como um balão...

Sentei-me numa poltrona larga e confortável com um travesseiro azul para encostar a cabeça. Na minha frente, uma senhora lia um livro em espanhol, ao meu lado, um homem grande resmungava diante de uma revista de ofertas, típicas de trens e aviões. Mas o meu primeiro interesse caiu sobre a bela mulher de quarenta e poucos anos, largada na poltrona em diagonal com a minha, muito elegante, que deixou escorrer uma lagrima redonda como uma bola de gude, quando o trem começou a se mover. Enxugou-a com gestos de Catherine Deneuve, discretamente chique. Volta e meia olhava-a com o rabo do olho, curioso em saber a origem da lagrima. La pelas tantas, ela dormia de boca aberta, emitindo um ronco suave que demonstrava que saiu o espírito de La Deneuve dando lugar a Didi Moco.

Viagem entorpecida pelas paisagens pálidas e sem majestosidade, coisas da vida no campo sob a luz mortiça da tarde. Nada pra fazer a não ser observar ao redor: do outro lado do corredor, uma mulher enorme de gorda acariciava as mãos de seu par, um homem magérrimo e com os braços cobertos de pelos claros, aparentemente um espécime raro nessa terra imberbe. O bilheteiro era um senhor com certa idade e um ar completamente feminino. Entendam: não gay mas feminino mesmo, como se o tivessem posto no corpo errado. Pouco antes da chagada puxei assunto com a senhora sentada na poltrona da frente e ela revelou-se uma viajante solitária, sensível e de conversa fácil. Tinha olhos cansados e ar de quem viveu muito mais do que o que podia ter vivido.

Chego na estação: uma italiana de sorriso tímido e uma garota de dreads me esperavam. Contato visual feito e já sabia que seriamos amigos. A coisa melhorou no local do show: uma mulher de origem italiana, a organizadora do evento, esbanjava simpatia, gosto por conversar e aquele sentimento raro – da minha seita favorita – de quem ama musica acima de qualquer coisa. Some-se isso ao fato de surgir mais um nome no grupo: Lotte, dinamarquesa loirinha, jovem e também de dreads, acompanhada por um pro-seco italiano que foi compartilhado com generosidade entre o grupo.

Estava me sentindo em casa pela primeira vez! Passei no hotel, menos para descansar, mais para fazer a barba pois ainda não consigo imaginar como me barbear nesse banheiro minúsculo e apertado da casa. Deve haver um jeito! Minha técnica para tomar banho melhorou bastante: empurro a cortina com a cabeça, me ensaboou e ao mesmo tempo sinto a água quente, fervendo, nas costas.
Se sair debaixo da água quente bate aquele frio insuportável e junto vem a tristeza que surge sorrateiramente como um gato a quem se oferece um peixe.

Tomei banho, fiz a barba, dei uma cochilada e resolvi voltar ao lugar do show mesmo sendo muito cedo. De qualquer modo la estavam minhas novas amigas, havia outros shows e gente para olhar, conhecer, pois as atrações eram tão diversas que grupos sociais bem diferentes compartilhavam do mesmo ambiente. Havia uma banda que usava verdadeiras raridades analógicas, como um mooog original, um inovator, filtros antigos, mesas do tempo do comecinho do kraftwerk. O som era incrivelmente bonito, timbres clássicos de sintetizadores mas a musica era horrível e sem imaginação. Coisa de quem gosta de equipamento e não de musica. Na seqüência, um proto-Bowie, de cabelo laranja, magro como um tuberculoso e com trejeitos andróginos berrava que “para você ser uma celebridade tem que deixar de lado a dignidade”. Boa desculpa para seu fracasso pessoal, pois certamente seu sonho era estar num grande palco, viajando pelo mundo, transando com homens e mulheres e não ali, numa cidadezinha perdida no interior da Dinamarca. O fato, muito simples de entender, eh que ele não tinha o menor talento. Tinha pose e look. E ponto.

Oliver Sacks em seu livro, “Alucinações Musicais”, descreve varias pessoas que por causa de algum trauma mudaram sua relação com a musica. Tem o critico que passou a ter fobia de musica e, entre outros casos, tem o cara que levou um choque e desenvolveu ouvido absoluto, ou seja, a capacidade de distinguir cada nota.
Esse homem passou a tocar piano com perfeição técnica, chegou a dar concertos e mudou completamente sua vida por causa da estranha e repentina paixão por musica clássica. Mas,apesar da técnica impecável, do ouvido absoluto, ele não parecia ter talento, essa coisa magica e inexplicável que reúne mais que a capacidade técnica, mas tambem empatia, vivencia pessoal, neuroses e sei la mais o que.

Quando o primeiro disco de Ed Mota foi lançado, Tim Maia dizia que ele não era bom interprete de soul pois “era jovem demais e não tinha levado chifre suficiente para saber o tom do sofrimento”.
(Ou coisa parecida, escrevo de acordo com o que ficou na memória...)

Esses shows aconteceram do lado de fora e eu me sentia de volta aos anos oitenta com suas roupas coloridas, enormes sobretudos, cabelos fosforescentes, gestos afetados e pose visivelmente fake em demasia.
Mas era um bom circo!

No palco interno, dois cantores – um com um mullet de tempos imemoriais, outro com jeito de quem fugiu do escritório de contabilidade – tentavam animar uma platéia de saltos-agulha e homens sem nenhuma pré-disposicao para o balanço no corpo. Hilário como uma festa de novela onde os figurantes fingem que estão se divertindo.

Marisa contou-me que, particularmente, ela não gostava daquela banda mas que salsa eh um ritmo muito popular na dinamarca, portanto la estavam eles para agradar a audiência.

Quando comecei a tocar o salão, que havia se esvaziado, logo encheu e a festa foi super boa. Durou mais tempo do que normalmente gosto de tocar. Usei minha técnica de DJ experiente: escolhi as minhas novas amigas e toquei para elas, tornando-as meu termômetro particular que indicava se aquele caminho era bom ou ruim. As garotas mais jovens, Ananda e Lotte, dançavam alegremente uma com a outra com aquela energia juvenil que certamente nunca mais terei. Trágico como sempre, me lembrei de Nelson Cavaquinho, que via nas flores seu futuro enterro. Pensei como a juventude eh um dom incrivelmente belo e como a vida a desfaz com seus medos, dores e ilusões. Garotas, aproveitem ao maximo!!! Como na musica dos Meeters “ Be fool, be young, be happy”

No fim da noite – eram três da manha – fomos nadando para o hotel e me despedi delas com uma sensação ótima de ter estado cercado de gente acolhedora e gentil.

Hoje, por acaso, encontrei Shack e fomos passear pelos cafés, cruzamos o cemitério e ele me mostrou a galera das gangues locais, arruaceiros típicos, rivais dos Hell’s Angels a ponto de traçarem tiros em nome da diferença.
Mas nada que se compare com a nossa velha e forte violência domestica genuinamente brasileira.

Agora estou em casa, faz um frio danado mesmo com o aquecedor no maximo. Me pergunto o que houve. Será que esta quebrado? Será que o aquecimento central foi desligado porque eu usava muito forte? Será que eh porque eh caro? Diante da distancia com minha room mate, diante do meu desconhecimento das regras locais, não sei como aborda-la para resolver essa duvida. Alguem tem uma sugestão?