OUVINDO O TEMPO PASSAR
Era uma dessas tardes de verão na década de 80, quando ninguém se preocupava em usar protetor solar, não se falava em aquecimento global e tínhamos a certeza juvenil de que seríamos eternos e saudáveis mesmo que tomássemos todas as drogas e bebêssemos garrafas e mais garrafas de vinho barato nas noites tediosas daquela pequena cidade. A Modinha - loja de discos obsessivamente visitada por nós, adolescentes em busca de novidades – trazia em sua vitrine um disco que me fez sonhar desde a capa, uma foto de dois caras com roupas de jaqueta de couro preto, o da direita portava um infame bigodinho sob o bico afetado dos lábios; o da esquerda, de óculos escuros, tirava um pacote do que parecia ser alguma droga do casaco. No alto, à esquerda, o nome do grupo: Soft Cell. Os dois eram, evidentemente, duas bichas desavergonhadas, chocantes em qualquer parte do mundo e mais ainda naquele lugar onde “os homens eram homens e as mulheres tinham que ter senso de humor”.
Fiquei encantado com a síntese visual da capa do LP e logo, já em casa, com a agulha deslizando pelos sulcos do disco lentamente entrei num mundo de perversões, vícios, duplas identidades, amores dramáticos e hiper-sexualizados. A narrativa que começava na capa se estendia nas letras, num conceito forte e como um bom livro nos puxava da realidade ensolarada para um mundo misterioso desde que dispuséssemos do tempo suficiente que o álbum nos pedia.
A década de 80 ainda cheirava a ditadura com seu obscurantismo e horror à diferença, não era tão fácil ter acesso às informações, não havia internet e cada disco que chegava, cada revista ou livro adquirido era saboreado como uma especiaria rara trazida por algum Marco Pólo contemporâneo de alguma parte distante do planeta. Degustava-se lentamente cada álbum, faixa a faixa, encarte à mão, decifrando as letras, absorvendo o completo conceito do artista.
Os anos 80 eram lentos, vagarosos e modorrentos...
Aí chegou a web com suas ramificações que quebravam a noção de distância e tempo; os relógios aceleraram, o dia podia ser noite pois, repentinamente, estávamos num limbo além da nossa posição geográfica. Se antes esperava-se um mês até a chegada de um disco novo, agora podia-se ter a discografia inteira do artista em apenas algumas horas de download, além de informações recentes, fofocas, fotos e até mesmo a sensação de contato direto com seu ídolo. HDs saturados de músicas de várias categorias, coleções imensas de coisas que jamais seriam ouvidas ou, se ouvidas, sempre com o dedo no fast forward, em busca da batida perfeita, da melodia grudenta, numa seletividade frenética, implacável, acelerada pela quantidade da oferta, um restaurante self service cultural onde come-se com os olhos e enche-se o prato de porções de tudo o que se oferece, movidos por uma gula sem harmonia, uma fome voraz além do que o corpo realmente precisa.
Mudou-se o modo de ouvir música. A geração que cresceu com a internet, com seus MP3 players lincados permanentemente nos ouvidos, conexões de banda larga em constante transmissão de dados, overdoses de hypes e tendências ultra segmentadas movidas por boatos mitificadores, conseguiu desvirtuar – não falo com um sentido moral, mas sim por sua própria natureza transformadora - o que seria um paraíso democrático de conhecimento e, paradoxalmente, achatou padrões sob a forma de compressões destinadas a ter níveis de áudio sempre altos, sem a dinâmica som/silêncio que é uma das características mais interessantes da música.
Não se ouve mais discos inteiros mas apenas faixas isoladas, o que modifica o antigo modo de criação - antes baseado num conceito total do álbum - com introdução, climas, ápices, final, enfim, a narrativa lítero-musical. A música destinada a essa geração é urgente e sintética, abstrata em sua forma virtual, sem corpo físico, um recado breve e direto, com prazo de validade curto pois o tempo encolheu e a vida segue num trem de alta velocidade...
O vinil continua sendo uma opção slow food ao consumo superficial de música, o prato pensado pelo chef obstinado em criar a obra perfeita que nos arranque da mediocridade das nossas vidas, que nos faça sonhar em cada sulco percorrido, o objeto que enche nossos olhos pela beleza gráfica da capa, o brinquedo lúdico que, como mágica, faz um mar de sons invadir a sala de estar afundando-nos na música, doce música.
Fiquei encantado com a síntese visual da capa do LP e logo, já em casa, com a agulha deslizando pelos sulcos do disco lentamente entrei num mundo de perversões, vícios, duplas identidades, amores dramáticos e hiper-sexualizados. A narrativa que começava na capa se estendia nas letras, num conceito forte e como um bom livro nos puxava da realidade ensolarada para um mundo misterioso desde que dispuséssemos do tempo suficiente que o álbum nos pedia.
A década de 80 ainda cheirava a ditadura com seu obscurantismo e horror à diferença, não era tão fácil ter acesso às informações, não havia internet e cada disco que chegava, cada revista ou livro adquirido era saboreado como uma especiaria rara trazida por algum Marco Pólo contemporâneo de alguma parte distante do planeta. Degustava-se lentamente cada álbum, faixa a faixa, encarte à mão, decifrando as letras, absorvendo o completo conceito do artista.
Os anos 80 eram lentos, vagarosos e modorrentos...
Aí chegou a web com suas ramificações que quebravam a noção de distância e tempo; os relógios aceleraram, o dia podia ser noite pois, repentinamente, estávamos num limbo além da nossa posição geográfica. Se antes esperava-se um mês até a chegada de um disco novo, agora podia-se ter a discografia inteira do artista em apenas algumas horas de download, além de informações recentes, fofocas, fotos e até mesmo a sensação de contato direto com seu ídolo. HDs saturados de músicas de várias categorias, coleções imensas de coisas que jamais seriam ouvidas ou, se ouvidas, sempre com o dedo no fast forward, em busca da batida perfeita, da melodia grudenta, numa seletividade frenética, implacável, acelerada pela quantidade da oferta, um restaurante self service cultural onde come-se com os olhos e enche-se o prato de porções de tudo o que se oferece, movidos por uma gula sem harmonia, uma fome voraz além do que o corpo realmente precisa.
Mudou-se o modo de ouvir música. A geração que cresceu com a internet, com seus MP3 players lincados permanentemente nos ouvidos, conexões de banda larga em constante transmissão de dados, overdoses de hypes e tendências ultra segmentadas movidas por boatos mitificadores, conseguiu desvirtuar – não falo com um sentido moral, mas sim por sua própria natureza transformadora - o que seria um paraíso democrático de conhecimento e, paradoxalmente, achatou padrões sob a forma de compressões destinadas a ter níveis de áudio sempre altos, sem a dinâmica som/silêncio que é uma das características mais interessantes da música.
Não se ouve mais discos inteiros mas apenas faixas isoladas, o que modifica o antigo modo de criação - antes baseado num conceito total do álbum - com introdução, climas, ápices, final, enfim, a narrativa lítero-musical. A música destinada a essa geração é urgente e sintética, abstrata em sua forma virtual, sem corpo físico, um recado breve e direto, com prazo de validade curto pois o tempo encolheu e a vida segue num trem de alta velocidade...
O vinil continua sendo uma opção slow food ao consumo superficial de música, o prato pensado pelo chef obstinado em criar a obra perfeita que nos arranque da mediocridade das nossas vidas, que nos faça sonhar em cada sulco percorrido, o objeto que enche nossos olhos pela beleza gráfica da capa, o brinquedo lúdico que, como mágica, faz um mar de sons invadir a sala de estar afundando-nos na música, doce música.
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